Hoje fui
buscar meus óculos, encomendados segundo a indicação de um profissional da
medicina que me lembro ter visitado apenas cinco vezes em toda minha vida. A
primeira foi num longínquo dia de exame obrigatório nos meus tempos de curso
primário. Depois, em três renovações da carteira de habilitação de motorista, e
na quinta-feira passada, pela primeira vez, por iniciativa própria.
Como eu
não conseguia ver direito as placas indicativas do Túnel Ayrton Senna, por onde
passo todo fim de tarde, fui lá testar minha acuidade visual. E deu no que deu.
Meu olho direito tem uma deficiência de 0,75 para longe, e existe um pequeno
problema no esquerdo quando precisa ver de perto. Ou algo parecido com isso,
sei lá. Na verdade, nunca me preocupei muito com essas questões oculares, pois
sempre tive a tal visão de lince, até dois meses atrás. Nem me preocupei com as
minhas prováveis deficiências visuais, nem com as dos outros, até quinta-feira
passada e por isso não posso ficar dando detalhes mais precisos acerca de
graus. Também não entendo nada de miopia, hipermetropia ou astigmatismo, ou
seja lá aquilo que for que eu agora tenho.
Mas, como
eu dizia, fui buscar meus óculos, em decorrência disso tudo. Confesso que
estava ansioso pelo momento, e até saí mais cedo do trabalho, com medo de
chegar na ótica e encontrar as portas fechadas.
Cheguei em tempo, felizmente, e fui recebido com cumprimentos e balas
pela simpática dona do estabelecimento, que até me chamou pelo nome. Não há
nada mais normal do que alguém te chamar pelo nome. Um pouco menos normal é te
oferecerem balas, suco de laranja e cafezinho. Muito menos normal, descobri
depois, é a tática desses simpáticos donos de óticas.
Fui logo
convidado a sentar-me em cômoda cadeira, diante de um espelho circular. Normal,
entendi. Dona Irene, a que me vendeu a armação cinco dias antes, me informou:
como é a primeira vez que você usa óculos, ele vai ter que te dar algumas
instruções. "Ele", era o outro simpático especialista que, desde que
fui lá pela primeira vez, me atendeu com grande cortesia. Comecei a ficar
preocupado. Afinal, óculos não é apenas uma simples armação com lentes de vidro
que se coloca sobre o nariz e que fica entre nossos olhos e o mundo? Pra que
então as instruções?
Estava
para começar o rosário de recomendações que eu nunca imaginei poderem existir,
pelo simples fato de ter que usar óculos. O meu, pra que fique mais claro,
deveria ter lentes multifocais, que em resumo é uma dessas inovações
introduzidas pela tecnologia, para eliminar o incômodo causado pelas antigas e
superadas bi-focais. Aquelas que
salientam tuas olheiras para o resto da população, pois trazem bem visíveis as
dificuldades do usuário em ver de longe e de perto ao mesmo tempo, através de
um semi-círculo na parte inferior das lentes.
As
indispensáveis recomendações do especialista para quem usa óculos pela
primeira vez me assombraram. Especialmente se forem com lentes do tipo
multifocais, pois estas exigem uma série de exercícios muito complexa e um
aprendizado bem amplo, fiquei sabendo. Descobri, logo na primeira recomendação,
que as tais lentes multifocais têm uma certa zona, à direita e à esquerda, e
abaixo da linha do horizonte, que não servem absolutamente para nada. São zonas
neutras. Através dessa zona nebulosa não conseguirei ver nada, além de borrões
distorcidos. Soube então qual a razão da
tática de oferecer balas, sucos e cafezinho. Os donos de ótica deveriam
conceder um desconto de pelo menos uns trinta por cento no preço dos óculos, em
virtude dessa inútil zona neutra das lentes. Ao invés disso, oferecem balas.
Desfeito o mistério.
O
principal alerta quanto a isso, frisou bem o especialista, é que você não vai
mais poder apenas virar os olhos para olhar para os lados. Vai ter que virar a
cabeça, pois assim seus olhos não são submetidos à brusca deformação que a área
neutra proporciona. Virando a cabeça, ao invés dos olhos, o seu cérebro
assimila logo o foco do objeto que você pretende ver. Gente! Vocês já pensaram
na consequência desse alerta? Como é que eu vou conseguir olhar , digamos, com
o rabo do olho, para aquela dona bem formada de corpo e feição, que passa ao
meu lado? Seja pela direita ou pela esquerda, o problema será o mesmo. Como disfarçar a olhadela indefectível para o "mulherão" que passa ao lado? Me danei! Ou entorto o pescoço, ou então todas as
bundas que passarem por mim ficarão definitivamente desfocadas pela tal zona
neutra da minha lente. Lamentável!
Mas não
era só isso. Disse-me o simpático especialista, que oferece balas e sucos
durante a visita à loja, que eu deveria me habituar com o novo jeito de subir e
descer escadas. Epa! Fiquei extremamente preocupado quando ele tocou nesse
assunto. Escada é escada, em qualquer lugar do mundo, tanto para quem usa
óculos quanto para quem não usa. Esse cara tá valorizando os óculos que me
vendeu, pensei. Mas, como marinheiro de primeira viagem utilizando as tais
lentes multifocais de última geração, ouvi a explicação, tintim por tintim.
Em
resumo, agora devo fazer muitas coisas que não fazia antes quando subia ou
descia uma escada. Olhar para o primeiro degrau, baixando a cabeça, e não os
olhos, calcular uma bissetriz entre o corrimão
e a altura de cada degrau. Colocar primeiro o pé direito, que é pra dar
sorte. Erguer a cabeça, e não só os olhos. Lembrar quantos degraus existem até
o topo ou o chão, e pronto... Conseguirei subir ou descer qualquer escada
usando óculos com lentes multifocais. Até as rolantes, me garantiu!
Outro ponto
que me chamou atenção naquela preliminar do especialista foi quanto à direção
de veículos automotores. Acho que vou ter que me inscrever numa auto-escola e
começar tudo de novo, pois as coisas mudam radicalmente quando se passa a ser
portador de óculos com lentes multifocais. Descobri que não devo olhar para os
retrovisores externos, seja do motorista, na esquerda, ou do passageiro, na
direita. Também vai ficar tudo fora de foco, como quando se olha para as bundas
com o rabo de olho, através da tal zona neutra. Já pensou? Eu, que sempre fui
bom em fazer manobras para estacionamento, aquelas tais balizas dos exames de
motorista! Como eu vou me virar, não sei.
Pra
encurtar a conversa, depois de cerca de meia hora de conselhos e recomendações
para usuários da primeira multifocal, dentre estes o de comer pipocas vendo
televisão, o gentil e simpático especialista da ótica me deu importantes dicas
de como lavar e conservar meus óculos com as discriminatórias lentes
multifocais. Sabãozinho e água aqui, lenço de papel ali, até que finalmente ele
me aconselhou a já sair da loja com o tal óculos, "pra ir
treinando". Agradeci, ganhei mais
algumas balas, uma flanelinha pra limpar
as lentes com muito cuidado e um estojo de feliz novo proprietário de um óculos
com lentes multifocais.
E lá fui
eu, óculos sobre o nariz, em direção ao meu carro. Logo de cara fui tropeçando no primeiro degrau da saída da
loja, e quase cai. A impressão que eu tive era a de estar dentro de um daqueles
aquários redondos. Cheguei relativamente bem até o meu carro, mas só acertei o
buraco da fechadura na terceira tentativa. Dei a partida, e antes de sair, fui
conferir o alerta sobre os retrovisores laterais. Santo Deus! Era verdade!
Sei dizer
que demorei um tempão pra chegar em casa, pois não passei dos quarenta
quilômetros por hora. Estava assustado demais com mudanças tão radicais e
repentinas. Custei a achar a fechadura da porta de meu apartamento. Custei a
localizar e tatear minha mulher antes de lhe dar o beijo de boa noite.
"Ah, agora sim! Você está parecendo um intelectual", me disse ela.
Creio que vou ter que conviver por algum tempo com esse tipo de coisas.
Paciência!
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Publicado no livro "Para bem existir - e outros escritos guardados no tempo"
ISBN 978-85-60380-52-7
Rumo Editorial - SP - 2017
Um comentário:
Gosto do modo de narração do episódio...da construção do tema, que pode ter acontecido, como pode nunca ter ocorrido...mas que ficou muito bonito, ficou!
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