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5.4.09

O Encantador de Passarinhos















Descobriu-o por mero acaso, numa certa manhã sem nuvens. A troco de nada olhou para o céu, e lá estava ele. Rápido, silencioso e distante. Muito distante. Um pontinho branco somente, deslizando como se tocado apenas pelo sopro do vento. Daquela vez segui-o com o olhar, até que de tão distante, o confundiu com o azul. Sumiu.

E passou o resto da manhã olhando na direção do infinito que aquela ave tomou, pensando em que árvore ela pousaria, em que riacho mataria sua sede, em que ninho descansaria suas asas. Tentou adivinhar-lhe o canto, decerto tão lindo e suave como era o seu jeito de voar. Decidiu que encantaria um daqueles, pois naquele tempo ele sabia encantar passarinhos. Nem precisava de arapuca. Bastava querer e logo tinha qualquer passarinho em sua mão.

As pombas ele soltava logo, pois não tinha muita graça ficar com passarinho que não cantava e só sabia fazer arrulhos. Gostava apenas de alisar sua plumagem macia, olhar um pouco a verruga sobre o bico, os olhos assustados de pássaro encantado... Depois abria as mãos e desencantava o bicho, que saía voando.

Já pintassilgo, bico-de-lacre, sanhaço, bem-te-vi, azulão, coleirinha e até mesmo joão-de-barro, ele guardava por algum tempo. Mas coisa pouca, porque o gostoso mesmo era só encantar a avezinha. Saber que poderia prendê-la para depois soltar. Ver o colorido de cada uma de suas penas e depois deixar voar outra vez.

E naquela manhã ele decidiu encantar também o pássaro silencioso e branco que riscou o céu e sumiu no horizonte distante. Queria ver sua plumagem, ver seus olhos assustados e depois soltar. Ficou de tocaia. Mas se cansou. Distraiu-se e quando se deu conta já era noite. E assim, deixou o encantamento para o dia seguinte.

Em muitos outros dias de céu claro ele viu o pontinho branco riscando o céu. Cismava com ele. Sabia a hora exata em que deslizaria, silencioso, rumando para o leste, no meio da manhã. Acompanhava com os olhos, até que sumisse na distância. Aguardava com ansiedade que retornasse, ali pela hora do sol se pôr. Isso, desde que descobriu que seu pássaro voltava nos fins de tarde. E de novo admirava o silencioso vôo. E foi assim que passou sua meninice e um longo tempo da sua vida, sempre encantando todo tipo de passarinho, menos esse um que voava tão alto que era quase impossível encantar.

***

Diz que é avião, disse-lhe a mulher num fim de tarde em que ambos acompanhavam o pontinho riscando o céu. Nessa hora de quase penumbra, o ponto tornava-se apenas uma pequena mancha escura contra o céu que ia se avermelhando. Disso os dois sabiam sem nem precisar olhar. Dia após dia, anos a fio, perseguiam o silencioso vôo apenas com os olhos.

Ele já ouvira mesmo falar que aquele pássaro que riscava o céu, naquela altura medonha, não era pássaro. Mas sabia que era um, embora não pudesse distinguir direito a espécie. Que outra coisa poderia voar daquele jeito? Tão bem e tão alto! Claro que era um pássaro! Branco pelas manhãs. Nesta hora, não mais. Ficou em silêncio, como silencioso sempre fora aquele pássaro distante que cruzara o céu intangível durante toda sua vida. Diz que é avião, repetiu a mulher num murmúrio quase inaudível.

De repente lhe ocorreu que sempre imaginou que o pássaro ia para algum lugar pelas manhãs, e voltava nos fins de tarde. E se fosse o contrário? Quem sabe ele sempre estivesse indo para algum lugar naquela hora do crepúsculo, e não voltando. Quanta viagem já fizera essa ave sem que ele nunca suspeitasse disso. Então se lembrou do tempo em que encantava passarinhos. Sentiu um aperto no coração. Não sabia mais como fazer os pássaros pousarem em suas mãos para depois soltar.

Então, fez o que tinha que fazer. Ergueu os braços em direção ao pequeno pássaro silencioso, que se desfazia no crepúsculo. Como se portasse uma espingarda, puxou o dedo no ar, disparando o gatilho da imaginação. Depois voltou ao seu silêncio.

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Publicado nos Anais da VI Jornada Médico-Literária Paulista - 27 a 30.09.2001 - Botucatu - SP
Debatido no Projeto "Balaio Literário" do SESC-SP, sob coordenação do escritor

João Silvério Trevisan - 2002
Publicado no livro homônimo "O Encantador de Passarinhos e outras histórias"
Rumo Editorial - São Paulo - 2011 
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