E não é
que o diabo do moleque se empoleirou no galho mais alto da goiabeira? Tão
ligeiro que Zulmira só chegou no pé da árvore muito tempo depois, um chinelo na
mão. Resfolegava. Olhou de um lado e de outro. Ainda não dera conta do
paradeiro do menino. Um farfalhar na goiabeira chamou sua atenção. Ah, você tá aí, seu peste? Desce já aqui! Eu
vou te encher a bunda de chinelada, seu sem-vergonha! Que o quê! Pedrinho estava firme e atarracado
em seu galho. Rosto vermelho, suando. Já
te disse pra descer daí, moleque! Desce senão eu vou chamar tua mãe e conto
tudinho pra ela, seu safado, bicho à toa!
Na maior
desfaçatez, Pedrinho apanhou uma goiaba verdolenga que estava ao alcance de sua
mão. Esfregou no calção e depois tascou-lhe uma dentada. Olhou para a moça lá
embaixo, patética, com o chinelo na mão e a expressão de raiva transfigurando
seu rosto. Vai querer? disse
zombeteiro pra Zulmira. E sem a menor cerimônia cuspiu uma parte da goiaba de
sua boca. Pimba! Em cheio na cabeça de Zulmira. Ah, pra quê! Meio desajeitada,
ela pulou no primeiro galho. Com a saia dificultando muito seus movimentos,
enroscou as pernas no tronco. Agora eu te
pego! E tentava subir, feito onça bravia. Percebendo a intenção de Zulmira,
Pedrinho olhou para os galhos à sua volta, procurando uma rota de fuga. Zulmira
já alcançava um galho mais alto. Pedrinho, por sua vez, safou-se por outro
lado. Enquanto a moça se esforçava para subir um pouco mais, o moleque saltou
lépido para o chão.
Agora eu tô vendo tudinho! gritou. E
se agachava, procurando melhor ângulo para olhar para cima. Tô vendo! Tô vendo! E ria, debochado. A
pobre moça não sabia se segurava a saia ou o galho da árvore. Lá embaixo
Pedrinho se deliciava com a proeza e com a visão privilegiada.
Irremediavelmente embaraçada e confusa, Zulmira começou a chorar. Soluçava
alto, as lágrimas a banhar sua face transtornada pelo ódio e pela vergonha. Eu vou te matar! Pedrinho parou de rir. Vou te matar! O moleque se compadeceu
com a choradeira de Zulmira. Se você não
me bater nem contar nada pra minha mãe eu te ajudo a descer... Esperou uma
resposta de Zulmira, que não veio. Quer
ou não quer que eu te ajude a descer? Mais uma vez somente os soluços de
Zulmira. Pedrinho deu de ombros e já ia tomando seu rumo quando ela disse tá bom...
O moleque
voltou para a árvore, meio ressabiado. Antes de começar a subir, disfarçou e
lançou mais uma olhadela para cima. Disfarçou um leve sorriso. Num instante
alcançou o galho onde Zulmira se enroscara definitivamente. Com um puxão,
desenroscou a saia da moça do galho. Depois estendeu-lhe a mão. Eu vou bem devagarinho e você vem pisando no
galho que eu pisar. A mão de Zulmira tremia. Vagarosamente, galho a galho,
terminou o resgate.
Já no chão, Zulmira procurou seus chinelos. A
cabeça baixa, soluçando ainda. Você não
vai me bater, vai? Ela lançou um olhar lacrimoso na direção do moleque. Devia, mas não vou. Pedrinho sorriu
intimamente. Nem vai contar nada pra
minha mãe, né? A moça sussurrou outro não, quase inaudível. O moleque era
senhor da situação. Então tá, ele
disse. E se calou. Ficaram ambos ali, meio procurando que rumo tomar depois da
refrega toda. Zulmira já não chorava. Pedrinho riscava o chão com um graveto.
O, Zu... disse ele depois de algum silêncio. O que é, respondeu Zulmira. Eu tava aqui pensando comigo... Eu não devia
ter ajudado você a descer... A moça olhou para Pedrinho, com certo espanto.
Pois se eu prometi que não vou te bater
nem contar nada pra tua mãe, eu vou cumprir... Pedrinho continuou
rabiscando o chão com o graveto. Não é
por causa disso, retrucou, sem olhar para a moça. E eu posso saber por quê é, então? Pedrinho permaneceu mais alguns
segundos em silêncio. É que... posso
falar? A moça se impacientou e disse ríspida, pode! Anda logo! Pedrinho
atirou o graveto na direção da moça. Tava
tão bonito com você lá em
cima... E desandou a correr, Zulmira atrás dele com o chinelo
na mão.
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Publicado nos Anais do XX Congresso Brasileiro de Médicos Escritores
Ediame - RS - 2004
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