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18.9.15

Visitando la Chascona















Foi no ano em que nasci que eles começaram a construir aquela casa cheia de escadas, passagens secretas, portas pequenas e teto baixo, lembrando o interior de um navio. Por aquele tempo Pablo ainda mantinha em segredo o acalorado romance que iniciara com Matilde na primavera de 1946, quando se encontraram pela primeira vez em um concerto no Parque Florestal de Santiago.

Certo dia, caminhando de mãos dadas pelas ruas do bairro Bellavista eles se depararam com aquele terreno à venda, aos pés do cerro San Cristóbal. Ficaram encantados com a água que corria pelo terreno, "escrevendo em seu idioma entre a folhagem das framboesas que guardavam o lugar com sua ramagem sanguinária", como disse Pablo algum tempo depois. Compraram o lote de terra e encomendaram a construção a Germán Rodríguez Arias. Quando olhou para aquele terreno tão inclinado e íngreme, o arquiteto catalão imaginou o castigo que teriam os habitantes daquela casa, condenados a subir e descer escadas. Ele imaginou a casa orientada para o sol, mas Pablo a preferiu com vistas para a Cordilheira. Ao final, foram tantas as intervenções do poeta, que do projeto inicial pouco restou.

Quando ficaram prontos o living e o pequeno dormitório, ali foi morar Matilde, sozinha e extremamente zelosa pelo ninho de amor secreto que aos poucos se instalava, cavando com as próprias mãos o chão onde agregava ao jardim novas mudas de paixão em forma de árvores e flores. E assim foi até fevereiro de 1955, quando Pablo colocou um fim em seu casamento com Délia e mudou-se definitivamente para La Chascona, que aos poucos ia ganhando novos cômodos. Estes surgiam de forma pouco convencional, segundo a sensibilidade e a inspiração dos amantes. De uma simples janela, uma poltrona e um quadro que gostava especialmente, Pablo fez surgir um novo cômodo, lembrou certa feita o arquiteto Carlos Martner, que dedicou-se à casa a partir de 1958.

Enquanto caminhava vagarosamente e em silêncio pelos cômodos eu ia me deparando com a presença dos amantes em cada objeto e em cada obra cuidadosamente dispersos pelos ambientes. O quadro em que Diego Rivera perpetuou a imagem dupla do rosto de Matilde e sua cabeleira ruiva e volumosa onde está também o perfil de Pablo, parece lembrar a todos a razão do nome daquela casa tão peculiar. Por todo canto e sobre cada móvel a poesia está presente, ora num arranjo, ora num verso rabiscado pelas mãos de Pablo. O enorme urso de pelúcia ainda guarda silenciosamente a intimidade do leito dos amantes. A sala de jantar com sua louça colorida permanece pronta e à espera de convidados. Assim também está o bar de verão, com o imenso leque cheio de retratos e recordações na parede atrás do balcão e o enorme e debochado par de sapatos displicentemente deixado no chão.

Em 23 setembro de 1973 Pablo morreu, dias depois do golpe militar que depôs Alliende. Foi velado por Matilde e alguns poucos amigos no living com vidros quebrados de La Chascona, a casa que o poeta tanto amou, e que naquele momento se encontrava lamentavelmente saqueada e vandalizada pelos ecos da revolução. Para que saísse o féretro foi preciso colocarem tábuas sobre a lama que encharcava tudo. Contudo, La Chascona, que parecia ter morrido também naquela ocasião, ressurgiu como Fênix, graças à persistência, paixão e dedicado trabalho de Matilde, que ali continuou morando até sua morte, em 1985.

Minha rápida e efêmera visita também já estava terminando. Depois de deter-me alguns minutos mais apreciando obras de arte, uns poucos livros, além de inúmeras medalhas e prêmios, dentre eles o Nobel de Literatura de 1971, guardados cuidadosamente numa estante, deixei a última sala de La Chascona.

Com alguma melancolia atravessei a porta de saída que dá acesso à sossegada e bucólica calle Fernando Marquez de la Plata. O silêncio parecia dizer-me que os vizinhos do casal ainda dormiam àquela hora da manhã. Caminhei mais alguns passos e votei-me para olhar ainda uma vez para a fachada de La Chascona. Pablo Neruda e Matilde Urrida, abraçados numa das sacadas, acenaram-me sorridentes e felizes. Acenei de volta. Depois ajeitei o cachecol, meti as mãos nos bolsos do casaco e desci até a Plazuela Camilo Mor de onde enveredei novamente pelas ruas geladas e inundadas pelas avermelhadas folhas dos plátanos de Bellavista.

Santiago, 11 de julho de 2015

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"Embora isto não interesse a ninguém, somos felizes (...) Matilde canta com voz poderosa as minhas canções. Eu dedico-lhe quanto escrevo e quanto tenho. Não é muito, mas ela está contente. Vejo-a agora a enterrar os sapatos minúsculos na lama do jardim e, em seguida, a enterrar também as suas minúsculas mãos na profundidade da planta. Da terra, com pés e mãos e olhos e voz, trouxe para mim todas as raízes, todas as flores, todos os frutos fragrantes da felicidade."
Pablo Neruda, in "Confesso que Vivi"

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Apresentado na XIII Jornada Médico-Literária Paulista - 27 a 29.08.2015 - SP
Terceiro lugar no Concurso de Prosas do evento
Publicado nos Anais do Evento. Baixe aqui:
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