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29.12.08

O Natal estragado






















I
Bruninho estava que não via a hora de chegar de noite. Bem de noite. Quando todo mundo fosse dormir. Só assim é que poderia dar certo. Mas na cozinha sua mãe, sua tia, sua irmã e também a vó Dora preparavam doces, assavam carnes, faziam quitutes.

Cada uma com seu afã. “E o fermento, quem é que trouxe?” Era como se ninguém ouvisse naquele burburinho da casa, mas o fermento aparecia, aparecia a farinha e aparecia um bolo de chocolate, todo vestido de morangos. Mexe que mexe na panela, mexe na vasilha, mexe para tudo quanto é lado. “Alguém pode desligar o forno? O assado já está no ponto!”

E Bruninho impaciente, não vendo a hora de chegar a hora. De chegar aquela hora bem de noitão mesmo, quando nin-guém mais estivesse acordado na casa. Aí sim!

II
A árvore já estava montada desde vários dias atrás. Foi o pai de Bruninho quem a armou e a encheu de bolinhas coloridas. Tinha anjo, tinha estrela, tinha um casal de renas, tinha sino e tinha um monte de enfeite dourado. Cada um mais bonito que o outro. Tinha também o papai-noel, que ficava lá no topo da árvore, gordão daquele jeito, olhando pra todo mundo.

Todos os irmãos de Bruninho deram palpites sobre onde colocar os enfeites, mas a maioria foi mesmo o pai de Bruninho quem colocou. Eram de vidro e tinham que ficar em lugar bem alto. Só o pai de Bruninho era quem punha a mão em mimos tão delicados.

Mas tinha um problema nisso tudo: a árvore ficou lá um tempão, depois de pronta, mas sem nenhum presente embaixo. Tanta coisa bonita enfeitando a árvore e nenhum presente? Bruninho achava isso um desaforo. Achava que as árvores de natal já deveriam vir com presentes embaixo.

III
Todos os irmãos de Bruninho tentaram explicar porque a árvore ainda não tinha presentes embaixo. Só que ele não queria saber de conversa. Como é que pode uma árvore sem presentes? Como é que pode? “Lembra na casa da tia Clara? Tava cheia de presentes...”

Explicaram que naquela vez já era a véspera de Natal e que o papai-noel já havia passado por lá. Por isso já havia todos aqueles pacotes. Aí Bruninho pensou assim: será que todos os meus irmãos acreditam mesmo no papai-noel?

Sentou-se no sofá e ficou pensando nisso. Olhava o papai-noel gordão, lá no topo da árvore, olhava para a correria dos irmãos pela casa. Sentia um cheirinho bom de rabanada com canela em cima. E pensava a que horas iriam botar os presentes ao pé da árvore.

IV
Mas para aquele Natal ele havia feito um plano. Quando todo mundo fosse dormir naquela véspera de Natal ele iria descobrir tudo, tudinho sobre papai-noel e sobre como os presentes aparecem lá. Até já dormira um pouco à tarde, que era para não ficar com sono na hora “h”.

Ajeitou-se no sofá da sala, nem ligando para a correria dos irmãos pela casa. Azar o deles! Iriam perder o melhor da história.

V
Então aconteceu da casa ficar silenciosa. Ainda podia sentir o cheirinho bom dos quitutes que vinha da cozinha. Mas sabia que todo mundo tinha ido dormir. Levantou do sofá na sala que, de luz, tinha só um pisca-pisca das pequenas lâmpadas da árvore de Natal. Mais nada. Pisando na ponta do pé, para não fazer barulho, foi em direção à árvore.

VI
“Ah! Que droga, viu!” Bruninho quase acordou todo mundo, reclamando em voz tão alta assim! É que os presentes todos já estavam lá, bem debaixo da arvorezinha, toda enfeitada com anjinhos, sinos, estrelas douradas, renas e o papai-noel gordão. Então ele falou de novo em voz muito alta, quase acordando todo mundo: “Papai-noel já passou! Que droga, viu!”

Mas rapidamente percebeu que não estava assim tão contrariado por ter perdido o melhor da história. Se o papai-noel já passara, pelo menos os presentes estavam lá. E se os presentes já estavam lá, o seu também já estava. Animou-se bem rapidinho outra vez: “ Vou saber qual é o meu presente!”

VII
Assim pensou e assim mesmo agiu. Olhou para aquele montão de pacotes, todos muito bem embrulhados com papel colorido, um bem diferente do outro na cor e no tamanho, e todos com fitas coloridas. Estava com um sorriso até aqui de contente! Certamente um deles era o seu. Mas como descobrir qual, se nenhum tinha um cartão ou o nome do dono? Papai-noel se esqueceu dos cartões. E agora? “Desembrulhando!” – pensou nova-mente em voz tão alta que quase acordou todo mundo.

E foi assim que Bruninho tomou a decisão de abrir todos os presentes daquele Natal, até descobrir qual era o seu.

VIII
Abriu primeiro a caixa grandona, de papel pintadinho de rosa, com uma fita bem larga de cetim. Rasgou o papel e espalhou tudo pelo chão. Era uma bicicleta! Aí Bruninho pensou assim: - “Este presente não é o meu, pois já ganhei uma bicicleta no ano passado. Deve ser da minha irmã Anacleta, pois a dela se quebrou noutro dia. Deve ser dela” – pensou. E logo que pensou assim, ouviu uma voz lhe dizendo:

“Foi logo abrindo o grande pacotão
e num instante ficou com um carão:
viu que era a bicicleta
de sua irmã Anacleta.
Aí, Bruninho! Que belo papelão!”


Bruninho olhou assustado para todos os lados da sala, mas não soube quem lhe falava, nem de onde vinha a voz. Esperou por um tempo, vendo as luzinhas pisca-pisca e mais nada. E os papéis do presente que ele abriu ficaram espalhados pelo chão.

IX
Depois de passado o susto, Bru-ninho achou muito bonito um pacote verde de papel crepom, fechado com laço escuro, de outro verde brilhante. Abriu. Começou uma ventania, dessas de temporais, querendo derrubar as coisas e assobiando para todos os lados.

Bruninho levou outro susto! Que vento era esse que vinha dessa caixinha? Nem bem tinha acabado essa pergunta, ouviu a mesma voz que já ouvira no outro presente:

“Abriu outro presente errado.
E estava de novo enganado.
Era só um secador,
girando a todo vapor.
Você não está muito apavorado?”


Bruninho só então desconfiou que aquele presente era o de sua irmã mais velha, a Carina, que vivia pedindo um secador de cabelos novo, só seu. E, de novo, os papéis do presente que ele abriu ficaram espalhados pelo chão.

X
Mas como Bruninho não desistia de abrir presentes para descobrir qual era o seu, resolveu abrir mais um: era uma caixa branca, tão branca que até brilhava. Então ele se assustou de uma vez. Tirou a tampa e... Era uma caixa cheia de estrelas. Quando Bruninho abriu a tampa, aconteceu. Todas as estrelinhas presas na caixa, quando viram a tampa aberta, escaparam. Foram todas parar no teto, pois estrelas gostam de lugares bem altos.

Bruninho gritou assim, tão alto que quase acordou todo mundo outra vez: “Desce daí todo mundo, que eu não mandei ninguém subir!”

Mas todas as estrelinhas ficaram lá no teto, brilhando. Ninguém queria descer. E Bruninho já estava muito preocupado com seu plano. “Quem é que vai acreditar que o papai-noel é o meu pai se eu não explicar isso direitinho? E quando eu disser que todas as estrelas foram parar no teto só porque eu desembrulhei o presente errado, que era de minha irmã, o que é que todo mundo vai dizer?”

E ainda por cima aquela coisa de todas as estrelas que escaparam da caixa branca estarem lá no teto. Todas! Nenhuma queria saber de descer. Tinha uma delas, até com um rabão bem grande e luminoso, que pousou bem no alto da árvore de Natal, por cima do papai-noel gordão. E ficou lá, quietinha, quietinha...

Bruninho estava com a boca aberta com tudo o que estava acon-tecendo. Só olhava para a árvore enfeitada pelo seu pai e para os papéis de presentes rasgados que já estavam espalhados pelo chão.

XI
“Agora, sim, é que eu sei qual é o meu presente. Lógico! É o que está embrulhado de azul!” E foi pensando assim que Bruninho foi abrindo outro pacote. Era de todos o mais cheiroso. Foi rasgando papel, arrancando fita e tirando coisa da caixa. Uma caixa de bombons. Cereja coberta com chocolate. Ai, que bom! Então ele comeu bombom, comeu bombom, comeu bombom...

E já estava tão estufado de tanto comer bombom quando ouviu, vindo sabe-se lá de que lugar da sala, que já era um brilhar só, de tanta estrela que tinha escapado do outro presente, uma frase que o deixou preocupado:

“Eu sabia que não era seu
esse doce que você comeu.
Se tivesse perguntado,
eu teria lhe falado...
Mas agora, o doce derreteu.”


Bruninho tentou fechar a caixa bem depressa, pensando que a voz vinha de dentro dela. Mas, cadê a tampa? Perdida no meio de tanto papel de presente colorido, rasgado e jogado no chão.

XII
Então era assim que funcionava? A cada presente errado que se abria, vinha aquela voz de recriminação, e ainda por cima fazendo um versinho? Foi aí que Bruninho teve uma idéia: “Vou conversar com essa voz”. E Bruninho quase gritou “Voz estranha, voz estranha, estou atrás do meu presente. Quer dizer, por favor, onde ele está?”

Esperou um pouco e não ouviu nada. Só havia silêncio na sala e a luminosidade de todas as estrelinhas fugidas, pregadas lá no teto.“Voz estranha, voz estranha. Se você não disser onde está meu presente, eu vou continuar abrindo... Olha que eu já avisei...”

E nada! O papai-noel gordão estava quietinho no topo da árvore, sorrindo. A única diferença era aquela estrela rabuda que foi parar quase sobre sua cabeça. Bruninho já estava muito impaciente e fez seu último aviso: “Voz estranha, voz estranha. Bem que eu lhe avisei... Vou abrir todos esses presentes até descobrir o meu!”

E nem bem terminou de dizer isso já foi rasgando o pacotão vermelho, de onde pulou um palhaço que não parava de gargalhar. E gargalhava tão alto, mas tão alto, que certamente iria acordar todo mundo. “Esse não é o seu”, gritou a voz. Abriu outro pacote. “Esse não é o seu”. E mais outro: “Esse não é o seu”.

XIII
E assim foi por um longo tempo, que Bruninho nem sabe quanto. Os papéis de presente iam ficando espa-lhados pela sala enfeitada de estrelas no teto. A voz continuava dizendo “esse não é o seu” e o papai-noel gordão já não estava mais no alto da árvore de Natal. Lá só havia a estrela rabuda, brilhando mais, muito mais que todas as outras que ficaram presas no teto. “Esse não é o seu!”, cuco, “Esse não é o seu!”, cuco...

Bruninho não descobriu o mistério do papa-noel e nem achou seu presente naquela grande confusão. E agora estava tudo estragado. O Natal estava estragado. Todos os presentes abertos, estrelas para todo lado, vozes vindo não sabia de onde, “esse não é o seu!”, e Bruninho achou que tinha estragado o Natal.

XIV
“Bruninho, acorda que o papai-noel já passou...”

XV
No ar havia um cheirinho bom dos assados e do bolo de chocolate. Os irmãos de Bruninho já não corriam pela casa. Abriam presentes. Bruninho esfregou os olhos e só então percebeu que dormira no sofá. Olhou para o teto e não viu estrelinhas grudadas. Olhou para o pé da árvore de Natal e viu que havia um monte de presentes ali. Correu os olhos para o topo da árvore e não viu o papai-noel gordão, sorrindo como estava antes. Ali havia apenas uma estrela rabuda, brilhando intensamente.

E foi então que o pai de Bruninho, esticando a mão com um pacote muito bem embrulhado, falou assim: “Toma, Bruninho! Este é que é o seu! Feliz Natal!”

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Publicado na edição 193 - dezembro de 2008 - do jornal "O Bandeirante"
Publicado na "Antologia Paulista 2009" 

Rumo Editorial - São Paulo - 2009
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