Quando vi a
reportagem na televisão me correu um frio na espinha, uma sensação
indescritível de culpa. As lágrimas de Dona Tereza, que tartamudeava diante da
câmera e mal conseguia relatar o fato ao repórter. As imagens do local onde
viveu RedAnne por longos cinco anos. A oferta generosa de uma recompensa para
quem desse notícias de RedAnne. Sua minuciosa descrição, feita entre soluços. O
nó que se formou na minha garganta.
Toda
a culpa do mundo pesou sobre os meus ombros ao ver Dona Tereza choramingando,
lamentando e pedindo a volta de sua RedAnne. Hoje, pensando um pouco melhor nos
fatos, me julgo um criminoso, até certo ponto, inocente. Como é que eu ia
saber? O que eu não deveria estar fazendo agora, é confessar o que, talvez,
nunca tenha sido um crime, isso nunca! Acho que Dona Tereza jamais irá me
perdoar, mas minha consciência me diz que devo narrar o acontecido. Se ficar
evidenciada minha culpa, me resigno à penitência. Se, contudo, eu for julgado
inocente, como na verdade acho que sou, resta-me compartilhar a dor de Dona
Tereza, e o consolo de ter feito o que fiz com a melhor das intenções. Eu não
sabia, no momento daquele ato terrível, qualquer antecedente sobre RedAnne que
pudesse livrá-la do destino que teve.
O
que mais me incomoda hoje é a dúvida. Isso poderia ser um alívio para minha
consciência, mas, ao contrário, é o que me martiriza e alfineta a alma. Talvez
nem fosse ela naquele dia. Poderia ser uma outra qualquer. Afinal, elas são
tantas e tão parecidas. Eu mesmo já vi muitas como RedAnne. Todas têm feições e
trejeitos muito parecidos e seria leviano afirmar que era ela. Como saber? E
mais: se hoje a trato pelo nome, é em razão de tê-lo visto na legenda da
reportagem da televisão, escrito com todas as letras. A grafia é essa mesmo:
RedAnne. Apareceu também o anúncio classificado que Dona Tereza mandou
publicar, onde pude confirmar que o nome era esse mesmo.
Uma
coisa deve ficar bem clara. Não fui eu que provoquei ou premeditei nada. Foi
RedAnne quem veio a mim e se insinuou. Dei-lhe abrigo e comida, é certo. Mas
por curtíssimo tempo. Eu não tinha intenção de me apegar a ela de forma alguma,
pois, nesses casos, acaba havendo remorso e inquietação da consciência quando
acontece o que acabou acontecendo com a pobre RedAnne.
Esta
narrativa nem estaria acontecendo se eu não tivesse visto Dona Tereza no jornal
das sete e meia, com a feição marcada pela dor da perda de RedAnne. Minha
consciência estaria tranquila, como esteve até então. O meu ato teria sido o
mais natural deste mundo. Mas assisti à reportagem e nela afloraram todos os
indícios e evidências que agora me atormentam, e com isso não posso me furtar à
confissão.
***
RedAnne
apareceu três dias antes do ocorrido, exuberante e mansamente. O ano findava.
Foi a primeira vez que a vi. Não pude suspeitar de onde viera. Como dona de meu
quintal, passeou serenamente, sem se importar com minha surpresa ao vê-la. Me
aproximei e ela não recuou. Não tinha medo.
Não
a toquei nesse primeiro encontro. Apenas dei-lhe de comer e permiti que ela
ficasse. Ela aceitou minha oferta com grande naturalidade e sem qualquer
demonstração de grtidão ou surpresa. Simplesmente comeu e ficou. A sua
aparência era belíssima e serena, e não pude deixar de admirá-la por isso.
Talvez
eu não devesse confessar, mas as coxas volumosas de RedAnne e seu peito
empinado e grande me chamaram atenção logo à primeira vista. Não era desejo ou
cobiça, mas não pude deixar de olhá-la com a intenção de analisar esses
detalhes tão íntimos de seu corpo.
A
mansidão e a beleza de RedAnne faziam supor que ela sempre for bem tratada.
Havia um certo ar de nobreza e desprendimento no seu andar vagaroso e elegante.
RedAnne era cativante.
Como
eu já disse, não a toquei no primeiro encontro, limitando-me a admirar sua beleza.
Pensei primeiramente em conquistar sua confiança, aceitando sua presença e
tratando-a com a delicadeza da qualela era merecedora. E o resultado foi
satisfatório. Havia uma certa reciprocidade entre nós. Respeito, eu diria.
Essas, creio eu, foram as razões que a levaram a ficar.
Ousei
tocá-la no dia seguinte, enquanto ela placidamente comia o que lhe ofereci. Não
houve sequer um gesto de recusa de sua parte. Manteve-se impassível, enquanto
eu acariciei suas costas e passei suavemente a mão por sua cabeça.
Minha
ousadia foi ainda maior quando a tomei nos braços, e pude sentir seu peito
arfante em minhas mãos. Com extremo cuidado, percorri todo o seu corpo antes de
deixá-la outra vez livre. Ela aceitou tudo isso sem esboçar qualquer reação.
Talvez por isso eu me permito hoje repartir a culpa com ela. Se ela tivesse3
fugido antes de permitir tamanha aproximação, nada teria acontecido depois. Mas
não! Ela provocou!
Era
apenas o segundo dia de sua presença e eu já havia traçado um plano sobre o seu
destino. Eu precisava experimentar a carne tenra que meus dedos haviam acabado
de tocar. Resolvi que iria comer RedAnne. E em data apropriada. No reveillon.
A
minha estratégia era manter a relação de confiança estabelecida para consumar
meu plano. Continuei tratando RedAnne com o necessário cuidado para que ela de
nada desconfiasse até a hora do... Crime!
Aqui
estou eu novamente a me culpar. Não houve crime. Premeditação do ocorrido, sim.
Mas nunca um crime. Foi tudo uma consequencia natural, própria do instinto do
ser humano. Lamento ter que ser tão rudo, Dona Tereza. Acho que comi RedAnne,
sim senhora, mas não mereço qualquer castigo por isso. Por mais que hoje a
senhora lamente a ausência dela. E, veja bem, eu “acho” que era ela, não tenho
certeza.
Apesar
de toda a semelhança física entre RedAnne e a descrição feita por Dona Tereza
antes de oferecer recompensa de quinhentas pratas para quem dela desse
notícias, eu ainda acho que pode ter sido outra, a daquela noite de reveillon. Mesmo assim, pretendo levar a
cabo este meu desabafo, pois não poderia deixar de mencionar alguns detalhes da
hora que comi RedAnne.
Comecei
a prepará-la no final da tarde do dia 31. Deixei um campanhe na geladeira, pois
a ocasião da passagem do ano sempre é propícia para champanhe. Quando ela já
estava preparadaa, tomei um banho e coloquei roupa branca, pois dizem que dá
sorte rompor o ano vestido dessa cor.
O
perfume que RedAnne exalou pela casa naquele começo de noite foi algo
indescritível, e fez aguçar mais o meu desejo de comê-la.
Chegou
a hora, finalmente, e RedAnne parecia soberba, perfumada, deliciosa... Explodi
o champanhe, cuja temperatura era a ideal, e ao espocar dos fogos que
comemoravam o nascer do novo ano, comi RedAnne.
***
Nada
mais há para confessar. Que me julguem agora. Tenho apenas a sugerir uma forma
de recompensar Dona Tereza pelo que ocorreu com RedAnne, já que tudo agora é
indubitavelmente irreversível: eu poderia dar-lhe outra galinha, da mesma raça
de RedAnne, de porte altivo e penas vermelhas.
Não
sei se poderia haver por esta a mesma estima que levou Dona Tereza a chorar o
sumiço de sua ave que acabei comendo na noite de reveillon. Reafirmo: na melhor das intenções. Ninguém veio reclamar
a galinha nos três dias em que ela ficou no meu quintal, comendo o milho que eu
comprei especialmente para ela.
Se
isto serve de consolo, posso afirmar que a carne da gorda galinha não era lá
tão macia. Afinal, tinha mais de cinco anos. E se posso dizer algo para
prevenir situações como esta no futuro, gostaria de sugerir que Dona Tereza
cuidasse melhor de seu galinheiro, não permitindo que outras galinhas virem ceias de reveillon por terem invadido quintais
alheios.
E
que não ponha nomes em suas aves.
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Publicado em “Contos &
Encontros”
Legnar Editora – São Paulo – 1998
ISBN 85-86556-04-1
Um comentário:
Bem... parece-me que o idílio amoroso foi bem interessante. Ótimo conto.
Sandra
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