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3.2.17

Acho que comi RedAnne


Quando vi a reportagem na televisão me correu um frio na espinha, uma sensação indescritível de culpa. As lágrimas de Dona Tereza, que tartamudeava diante da câmera e mal conseguia relatar o fato ao repórter. As imagens do local onde viveu RedAnne por longos cinco anos. A oferta generosa de uma recompensa para quem desse notícias de RedAnne. Sua minuciosa descrição, feita entre soluços. O nó que se formou na minha garganta.

Toda a culpa do mundo pesou sobre os meus ombros ao ver Dona Tereza choramingando, lamentando e pedindo a volta de sua RedAnne. Hoje, pensando um pouco melhor nos fatos, me julgo um criminoso, até certo ponto, inocente. Como é que eu ia saber? O que eu não deveria estar fazendo agora, é confessar o que, talvez, nunca tenha sido um crime, isso nunca! Acho que Dona Tereza jamais irá me perdoar, mas minha consciência me diz que devo narrar o acontecido. Se ficar evidenciada minha culpa, me resigno à penitência. Se, contudo, eu for julgado inocente, como na verdade acho que sou, resta-me compartilhar a dor de Dona Tereza, e o consolo de ter feito o que fiz com a melhor das intenções. Eu não sabia, no momento daquele ato terrível, qualquer antecedente sobre RedAnne que pudesse livrá-la do destino que teve.
            
O que mais me incomoda hoje é a dúvida. Isso poderia ser um alívio para minha consciência, mas, ao contrário, é o que me martiriza e alfineta a alma. Talvez nem fosse ela naquele dia. Poderia ser uma outra qualquer. Afinal, elas são tantas e tão parecidas. Eu mesmo já vi muitas como RedAnne. Todas têm feições e trejeitos muito parecidos e seria leviano afirmar que era ela. Como saber? E mais: se hoje a trato pelo nome, é em razão de tê-lo visto na legenda da reportagem da televisão, escrito com todas as letras. A grafia é essa mesmo: RedAnne. Apareceu também o anúncio classificado que Dona Tereza mandou publicar, onde pude confirmar que o nome era esse mesmo.
            
Uma coisa deve ficar bem clara. Não fui eu que provoquei ou premeditei nada. Foi RedAnne quem veio a mim e se insinuou. Dei-lhe abrigo e comida, é certo. Mas por curtíssimo tempo. Eu não tinha intenção de me apegar a ela de forma alguma, pois, nesses casos, acaba havendo remorso e inquietação da consciência quando acontece o que acabou acontecendo com a pobre RedAnne.
            
Esta narrativa nem estaria acontecendo se eu não tivesse visto Dona Tereza no jornal das sete e meia, com a feição marcada pela dor da perda de RedAnne. Minha consciência estaria tranquila, como esteve até então. O meu ato teria sido o mais natural deste mundo. Mas assisti à reportagem e nela afloraram todos os indícios e evidências que agora me atormentam, e com isso não posso me furtar à confissão.

***
RedAnne apareceu três dias antes do ocorrido, exuberante e mansamente. O ano findava. Foi a primeira vez que a vi. Não pude suspeitar de onde viera. Como dona de meu quintal, passeou serenamente, sem se importar com minha surpresa ao vê-la. Me aproximei e ela não recuou. Não tinha medo.

Não a toquei nesse primeiro encontro. Apenas dei-lhe de comer e permiti que ela ficasse. Ela aceitou minha oferta com grande naturalidade e sem qualquer demonstração de grtidão ou surpresa. Simplesmente comeu e ficou. A sua aparência era belíssima e serena, e não pude deixar de admirá-la por isso.
            
Talvez eu não devesse confessar, mas as coxas volumosas de RedAnne e seu peito empinado e grande me chamaram atenção logo à primeira vista. Não era desejo ou cobiça, mas não pude deixar de olhá-la com a intenção de analisar esses detalhes tão íntimos de seu corpo.
            
A mansidão e a beleza de RedAnne faziam supor que ela sempre for bem tratada. Havia um certo ar de nobreza e desprendimento no seu andar vagaroso e elegante. RedAnne era cativante.
            
Como eu já disse, não a toquei no primeiro encontro, limitando-me a admirar sua beleza. Pensei primeiramente em conquistar sua confiança, aceitando sua presença e tratando-a com a delicadeza da qualela era merecedora. E o resultado foi satisfatório. Havia uma certa reciprocidade entre nós. Respeito, eu diria. Essas, creio eu, foram as razões que a levaram a ficar.
            
Ousei tocá-la no dia seguinte, enquanto ela placidamente comia o que lhe ofereci. Não houve sequer um gesto de recusa de sua parte. Manteve-se impassível, enquanto eu acariciei suas costas e passei suavemente a mão por sua cabeça.
            
Minha ousadia foi ainda maior quando a tomei nos braços, e pude sentir seu peito arfante em minhas mãos. Com extremo cuidado, percorri todo o seu corpo antes de deixá-la outra vez livre. Ela aceitou tudo isso sem esboçar qualquer reação. Talvez por isso eu me permito hoje repartir a culpa com ela. Se ela tivesse3 fugido antes de permitir tamanha aproximação, nada teria acontecido depois. Mas não! Ela provocou!
            
Era apenas o segundo dia de sua presença e eu já havia traçado um plano sobre o seu destino. Eu precisava experimentar a carne tenra que meus dedos haviam acabado de tocar. Resolvi que iria comer RedAnne. E em data apropriada. No reveillon.
            
A minha estratégia era manter a relação de confiança estabelecida para consumar meu plano. Continuei tratando RedAnne com o necessário cuidado para que ela de nada desconfiasse até a hora do... Crime!
            
Aqui estou eu novamente a me culpar. Não houve crime. Premeditação do ocorrido, sim. Mas nunca um crime. Foi tudo uma consequencia natural, própria do instinto do ser humano. Lamento ter que ser tão rudo, Dona Tereza. Acho que comi RedAnne, sim senhora, mas não mereço qualquer castigo por isso. Por mais que hoje a senhora lamente a ausência dela. E, veja bem, eu “acho” que era ela, não tenho certeza.
            
Apesar de toda a semelhança física entre RedAnne e a descrição feita por Dona Tereza antes de oferecer recompensa de quinhentas pratas para quem dela desse notícias, eu ainda acho que pode ter sido outra, a daquela noite de reveillon. Mesmo assim, pretendo levar a cabo este meu desabafo, pois não poderia deixar de mencionar alguns detalhes da hora que comi RedAnne.
            
Comecei a prepará-la no final da tarde do dia 31. Deixei um campanhe na geladeira, pois a ocasião da passagem do ano sempre é propícia para champanhe. Quando ela já estava preparadaa, tomei um banho e coloquei roupa branca, pois dizem que dá sorte rompor o ano vestido dessa cor.
            
O perfume que RedAnne exalou pela casa naquele começo de noite foi algo indescritível, e fez aguçar mais o meu desejo de comê-la.
            
Chegou a hora, finalmente, e RedAnne parecia soberba, perfumada, deliciosa... Explodi o champanhe, cuja temperatura era a ideal, e ao espocar dos fogos que comemoravam o nascer do novo ano, comi RedAnne.

***
            
Nada mais há para confessar. Que me julguem agora. Tenho apenas a sugerir uma forma de recompensar Dona Tereza pelo que ocorreu com RedAnne, já que tudo agora é indubitavelmente irreversível: eu poderia dar-lhe outra galinha, da mesma raça de RedAnne, de porte altivo e penas vermelhas.
            
Não sei se poderia haver por esta a mesma estima que levou Dona Tereza a chorar o sumiço de sua ave que acabei comendo na noite de reveillon. Reafirmo: na melhor das intenções. Ninguém veio reclamar a galinha nos três dias em que ela ficou no meu quintal, comendo o milho que eu comprei especialmente para ela.
            
Se isto serve de consolo, posso afirmar que a carne da gorda galinha não era lá tão macia. Afinal, tinha mais de cinco anos. E se posso dizer algo para prevenir situações como esta no futuro, gostaria de sugerir que Dona Tereza cuidasse melhor de seu galinheiro, não permitindo que outras galinhas virem ceias de reveillon por terem invadido quintais alheios.
            
E que não ponha nomes em suas aves.

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Publicado em “Contos & Encontros” 
Legnar Editora – São Paulo – 1998

ISBN 85-86556-04-1 

Um comentário:

Anônimo disse...

Bem... parece-me que o idílio amoroso foi bem interessante. Ótimo conto.
Sandra

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