Choveu o que Deus mandou. Nem deu para
trabalhar. Bertão se entrincherou num ranchinho de sapé que fizeram no meio do
arrozal. Enrolou um cigarro de palha, pitou. Ficou olhando a chuva. As poças
d’água do lado de fora iam encharcando a terra. Acocorado, riscou o chão com um
galho, sem querer pensar em nada. E chovia. O arroz novo, com palmo e meio,
tombava. A chuva fazia bem para a plantação. Depois de pitar, Bertão afiou a
enxada, lambeu o dedo e passou na lâmina. Estava boa.
Como
não parasse de chover, resolveu voltar. Amarrou a trouxa de novo no cabo de
enxada e se foi na chuva. Pisou lama, encharcou as pernas das calças, molhou a
camisa de flanelão xadrez. Chapelão de palha na cabeça, Bertão atravessou a
cerca do pasto e tomou o rumo da vila. A chuva pelo jeito ia durar o dia
inteiro. Andou pelo capim molhado, devagar, sem se importar com a água fria que
batia nas costas. Perto da biquinha avistou Venancio. Foi se chegando. Venancio
estava de pé, com os braços estendidos rente ao corpo molhado. Parecia olhar
longe.
“Bom
dia, compadre”. Venancio, nem te ligo. Bertão cismou. Parou coisa de dois, três
passos do homem. “Tomando chuva, compadre?” O outro não fez nem conta. Bertão,
meio ressabiado, deu um passo e parou. Olhou bem, de cima a baixo, e se
assombrou. O homem parecia morto. Morto em pé. Os olhos abertos, sem piscar, a
água escorrendo pelo rosto, entrando pela boca entreaberta.
Bertão
tocou no ombro de Venancio. Gelou. O homem estava duro feito uma tora, frio
como um defunto. Bertão se apavorou. Largou tudo e azulou para os lados da
vila. Correu mais que cão danado. Chegou espumando pela boca, sem poder
respirar. “Que é que foi, homem? Viu assombração?” Bertão não falava. Estava
branco. “Fala homem de Deus!”. Nada.
Deram
água com açúcar. “É Venancio”, conseguiu Bertão. “Fala o que é que tem o
Venancio, homem!” Começou a chegar gente, pois Ditinho Preto correu logo pelo
casario dizendo que Bertão viu alma do outro mundo. Foram acalmando o pobre, a
poder de água com açúcar e depois cachaça.
Quando
começou a falar, Bertão disse tudo de um só fôlego. “Venancio tá lá no caminho
da bica duro feito uma pedra e com os olhos arregalados eu falei com ele e ele
não respondeu acho que tá mortm em pé”. Murmúrio geral. Gente se benzendo.
“Cruz credo. Tá morto?”. “Sei não. Tá de pé, com a boca de quem viu alma penada e os olhos desse tamanho.
Encostei nele e me correu um gelado pela espinha. Não mexeu nem um tiquinho
só.”
A
essa altura já havia gente para averiguar. Ditinho Preto nem sabia para quem mais
contar. Corria de uma casa a outra dizendo que Venancio morrera de pé, que isso
era coisa do demo. Saíram num grupo de seis ou sete homens. Passo Apressado
pelo meio do pasto que era só água. Bertão andava meio abobado, no meio dos
outros homens, tropeçando e pisando nos charcos. “Tá lá”, mostrou Bertão
apontando com o dedo trêmulo. Voltou numa carreira.
Os
que iam junto se aproximaram. “Compadre?”, chamaram. Que compadre que nada.
Ficou como estava, durinho. Teve um que passou o braço pelo ombro do infeliz,
tentando despertar, convencer. Nada. “É obra do tinhoso”, disse. “Se tá morto
não sei, mas que tá gelado feito um defunto, isso tá”.
Deram
ordem a Ditinho Preto. Que fosse buscar mais gente, para levar o pobre homem de
volta para a vila. Não precisou falar a segunda vez. Ditinho saiu desembestado,
varando cerca no peito.
Tentaram
deitar o morto. Foi aí que começou a assombrar mesmo. Não se mexia um dedo. Em
seis ou sete que estavam, não conseguiram deitar o homem. Parecia fincado no
chão. Um deles correu, assustado. “É coisa do cão, crendospadre. Eu que não
fico mais aqui.” E agora? Assim é que o pobre do Venancio não podia ficar.
Ainda mais debaixo de chuva. De jeito nenhum!
Foram
buscar dois cavalos. Cordas. Tirariam Venancio dali nem que tivessem que
arrastar. Chegaram os cavalos. Amarraram a corda firme no corpo de defundo e
atrelaram os cavalos. Puxa que puxa, e nada. Os homens suavam. A chuva
continuava castigando. Desistiram.
“Como
é que a gente vai fazer com ele?” Ninguém sabia. Todo mundo cansado e
assustado. “Melhor deixar ele aqui e chamar o padre Deodoro. Com as coisas do
diabo quem pode mesmo é só Nosso Senhor Jesus Cristo”. Benzeu-se.
Foram
chamar o padre. A chuva, nesse meio tempo, parou. Deixou muita lama no caminho
da cidade. Da vila até a cidade, onde morava o padre Deodoro, dava coisa de
três léguas, três léguas e meia. O padre relutou em atender o pedido. “Onde é
que já se viu morto em pé?” Mas como todo mundo insistisse, e havia um ar de
assombro, acabou concordando. Bastou isso para o fato se espalhar também pela
cidade. “Lá na fazenda São João Batista tem um defundo em pé, fincado no chão”.
Quando
o vigário saiu, montado num jegue pardo, foi seguido por uma verdadeira
procissão. Todo mundo rezando e cantando hinos. Todo mundo querendo ver o morto
em pé. Nem o barro do caminho segurou o mundaréu de gente que se aventurou até
a fazenda. Foram chegando à noitinha. Numa distância segura, os colonos da
Fazenda São João Batista velavam o defunto.
“Tá
mortinho, seu vigário”. O pároco repetiu o sinal da cruz bem umas cinco vezes.
Chegou-se, examinou, tocou o defundo com cuidado. Benzeu-se de novo.
“Impossível!” Seguiu-se uma reza comprida, o padre espantando os maus
espíritos, o povo repetindo as rezas. Fizeram fogo. Gente da cidade começou a
ir embora alí pelas oito da noite. O vigário voltou também, incrédulo, trêmulo,
murmurando preces e fazendo o sinal da cruz.
Resolveram
velar o corpo durante a noite. Pela manhã decidiriam o que fazer. Trouxeram
cachaça. Ditinho Preto quis ficar também. Beberam e pitaram. A noite foi
ficando limpa, o céu claro pela lua quase cheia. Falaram do morto com mais
naturalidade. Uma fogueira crepitava, ajudando a esquentar. “Compadre Venancio
era home bão. Merecia morte mió”, disse alguém. Concordaram. Fizeram outros
elogios ao defunto, como era por bem fazer.
Venancio,
que Deus o tenha, ficou ali onde estava. Duro, de olhos abertos, fincado no
chão. A luz do fogo tremulava contra o rosto do homem, clareando a boca
entreaberta e o rosto branco. Podia se contar uns doze homens velando o defunto
e bebendo cachaça. Aos poucos começaram a prosear sobre outros assuntos e a se
esquecer do defunto. Falavam de coisas do roçado, de estórias de alma penada,
da qualoidade da cachaça. Bebiam.
No
dia seguinte, ainda cedo, tentaram dar um jeito no defunto. Sair dali não sía.
Tiveram ideia de cavar o chão por baixo do defunto. Vieram as ferramentas.
Começaram a bater o enxadão rente ao pé de Venancio. A terra estava dura como
pedra. Cansados, resolveram desistir e deixar tudo como estava.
Melhor.
Cobriram o corpo com uns galhos secos. Foram embora. Nunca se soube or ali de
um morto que tivesse dado tanto trabalho. “Os bicho dão conta dele”.
***
Passou
o tempo, sem que ninguém mais se atrevesse a passar pelos ldos da biquinha,
onde o homem morreu em pé. Diziam eu Venancio, depois de vários meses, ainda
estava lá, como o deixaram. Urubu não comeu. Só que ninguém ia até lá para
confirmar.
Bertão,
o que viu primeiro, endoidou. Passava os dias de boca aberta, a baba escorrendo
pelo canto, sem falar nada, o olhar perdido, sempre. Andava pelo pasto, pela
roça. Diziam que era o único que passava perto da biquinha. Falavam que também
tinha parte com o entojado, que era alma desgraçada feito o outro.
Um
dia Bertão não voltou de suas andanças pela fazenda. Um, dois dias, e nada de
Bertão aparecer. Ninguém quis sair para procurar. “Decerto também tá por aí,
duro, fincado no chão. Valha-me, Deus!” Os colonos foram ficando cada vez com
mais medo, cada dia falando menos. O cão andava solto. Ninguém mais falava em
Vanancio, muito menos em Bertão. Se o coisa-ruim ouvisse essas conversas...
Foi
assim que a fazenda São João Batista foi ficando cada dia mais triste e
abandonada. Os colonos, pouco a pouco, foram indo embora para lugares menos
perigosos. Ninguém mais queria trabalhar ou morar na São João Batista, onde o
diabo andava pelos matos e pelos pastos endurecendo as pessoas. Os donos
puseram a São João Batista à venda. Não dava mais para tocar o trabalho sem os
colonos. Nunca apareceu interessado em comprar. Um dia os donos também foram
embora.
Ditinho
Preto foi ficando. Virou homem. Recebeu inesperadamente, como herança, aquele
mundão de terras, agora abandonadas. Desde o começo achava que era história mal
contada. Quem é que tem um homem morrer de pé e ficar fincado no chão? Que é
que tem um outro sumir? Mesmo assim, alguma coisa ainda intrigava Ditinho nesse
caso.
Certo
dia resolveu ir ver. Pegou uma garrucha, uma foice, como se isso fosse espantar
o capeta caso necessário. Sé é que era coisa dele. Foi. Chegou perto da
biquinha na ponta dos pés. O mato encobria quase tudo. Olhou para o lugar onde
Venancio tinha ficado. Nem Venancio, nem nada. Só mato. Criou coragem, roçou um
bom pedaço e não viu nem sinal de ossada de gente. Cutucou a terra. Fofa,
encharcada pela proximidade da água da bica.
Ditinho
ficou pensando, remoendo as coisas na cabeça, imaginando se tudo aquilo
aconteceu mesmo. Afinal, fazia tanto tempo... Quase noite, Ditinho voltou.
Entrou na casa de chão batido, paredes de barro, única habitada na fazenda
abandonada.
A
lamparina estava acesa, a mesa posta, uma panela fervendo no fogo. Na mesa, uma
garrafa de cachaça. Venancio e Bertão sentados no banco, pitando. Ditinho tirou
o chapéu, sorriu, disse “noite, compadres”, sentou-se com eles e comeu.
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Publicado em “Contos &
Encontros” – Legnar Editora – São Paulo – 1998 - ISBN 85-86556-04-1
Publicado em "Para bem existir" - Rumo Editorial - São Paulo - 2017 - ISBN 978-85-60350-52-7
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