Dona Zulmira, vizinha de frente:
"Olha,
Deus que me perdoe o que eu vou dizer! Não tenho nada com a vida dos outros. Eu
não sou de me meter, mas eu acho que essa tal de Dedé não é flor que se cheire,
viu, doutor! É um entra e sai naquela casa, que... Olha! Vou te falar um
negócio! Parece um nãoseiquê...
Sábado passado mesmo, você viu né, Olavo? Sábado passado foi um movimento
danado na casa da Dedé... E cada tipo mais esquisito, Deus que me perdoe! Eu
não gosto muito de ficar falando essas coisas, porque senão o Doutor vai pensar
que eu sou fofoqueira como umas e outras por aí... Eu não! Eu só falo do que eu
vejo e do que eu tenho certeza! O resto não é da minha conta! O Olavo me
conhece bem, não é, Olavo? Eu não vou fazer queném
a inchirida da Catarina, do 32,
que vive se metendo com a vida dos outros. Eu não! Então, doutor... Como eu
estava falando, no sábado passado eu vi, com esses olhos que a terra há de
comer, uma zanzação de gente lá na
porta da casa da Dedé, que dava até medo! Era carro que chegava, carro que
saía, roncando os pneu, gente que
entrava, gente que saía... E um barulhão, que só vendo! Sabe essas música americana, que ninguém entende nada? Então... no último
volume, o senhor tinha que ver! Parecia um... Deus que me perdoe! Deixa pra lá,
vai. Eu já disse que não gosto de ficar falando da vida dos outros. Então! Mas
aí, né, quando foi lá pelas duas da madrugada... Já era mais que duas, né
Olavo? Sabe como é, a gente deita cedo, mas fica a noite inteira acordada
quando tem uma bagunça dessas, que não deixa a gente pregar os olhos... Pois é!
Lá pelas duas da madrugada, ou um pouco mais, eu ouvi uma gritaria, um zumzumzum que dava até medo! Eu me
assustei... Eu nem quis olhar pela janela, porque fiquei com medo. Chamei o
Olavo, mas o Olavo parece que não liga quando eu falo! Ou não liga ou tá
ficando surdo, porque com a bagunça que estava, e ele não me ouvir nada!... Só
surdo mesmo pra não ouvir. Bom...Eu sei dizer que passei a noite inteira acordada.
Mas eu não vi nada, não senhor. Se eu falar para o senhor que eu vi quem
atirou, eu vou estar mentindo, e mentira comigo não tem vez! Desconfiar a gente
desconfia, sabe como é, né, doutor.. Eu até acho que foi um cabeludo, que
estava de calça rancheira desbotada e com um rasgo no joelho... Mas entre eu
achar e ter sido ele mesmo... Eu não vi nada. Só o entra e sai, e assim mesmo
até na hora em que eu fechei a janela e fui deitar. Depois só ouvi a barulheira
que eu estou falando para o senhor. Não é, Olavo? Se eu tivesse visto, eu
falava. Mas como não sou de ficar conchetando como umas e outras por aí,
que só abre a boca pra falar da vida dos outros... E depois, foi bem feito o
que aconteceu! Isso é praquela
cretina da Catarina não ficar se metendo com a vida dos outros..."
Binho, amigo
da escola:
"Eu tava lá sim, ó. A Dedé convidou a galera toda, tá ligado? Tava o maior barato, doutor. Tinha que
ver! Altos sons, tá ligado? A Daysinha
levou uma pá de CD importado que o velho dela trouxe dos Isteits, tá ligado? O velho dela vai pra América todo mês. Meu!
Maior sonzão, cara... Putz! Pauleira mesmo! Mas não rolou nada lá não, sacou?
Só tinha um whiscão e umas cerva que o pessoal fez vaquinha e
comprou, tá ligado? A galera tava maneira porque a mãe da Dedé deixou tudo
recomendado, sabe como é? Nada de sair pra umas diferentes, tá ligado? A galera
topou, senão não ia dar festa. E aí rolou tudo maneiro... Tinha uns caras que
não era do pedaço, mas tudo gente boa. Convidado da Taninha e do Kiko. E se é
convidado de alguém da galera, é gente nossa, tá ligado? E depois, essa de o
pessoal aí estar dizendo que tava uma zoeria não tá com nada, tá sabendo? O som
nem tava no último volume! Se puser o aparelho da Dedé no último... Meu!...Nem
te falo, cara... Tava tudo muito maneiro, tá ligado? Só quando rolava um
musicão que a galera curte mesmo de montão é que a gente aumentava um pouco...
Depois, não! Tudo no comportamento, tá ligado.
Eu fiquei curtindo um som o tempo todo. Não sei quem atirou, não senhor.
Acho que não foi ninguém da galera, tá ligado? O pessoal só curte uma... Não é
de fazer esse tipo de zueira não, tá ligado? Pô! Maior roubada, meu! Só fiquei
sabendo o que tinha rolado no dia seguinte, quando a Dedé falou. Aí eu fiquei
injuriado, ó! Agora, o senhor vê aí...
Eu tava lá, mas não fiz nada! O senhor que vê aí, tá ligado?"
Olegário, tio de Dedé e vizinho do lado
direito:
"Eu não me incomodo que os meninos
fiquem até as tantas se divertindo. Já estou acostumado. Eu gosto muito da
juventude. Já fui de fazer minhas farras, quando era mais moço. Hoje em dia,
não! Mas nos bons tempos... O que mudou foi o ritmo, os aparelhos de som mais
potentes... No meu tempo se dançava muito bolero, daqueles de dançar de
rostinho colado, o senhor conhece... Perfumes
de Gardênia... Tinha samba-canção... Quando começava um samba-canção, não
tinha par que ficava sentado... Depois que eu conheci a patroa, a gente ia
junto nos bailes. Até casar. Mas depois que nós casamos, não saímos muito
mais... Só de vez em quando... E depois tem outra: o senhor acha que ficava bem
eu implicar com a garotada, com minha sobrinha? Deixa eles que se divirtam,
enquanto são jovens... Depois que começa a responsabilidade, os coitados não
vão ter mais tempo pra isso... E depois, a Dedé é uma menina boa, estudiosa...
Merece se divertir... A mãe dela, minha irmã Ana, pediu pra que eu tomasse
conta da meninada, desse uma olhada de vez em quando... Mas eu não ia ficar lá
no meio deles o tempo todo, né, doutor! Não tinha nem cabimento, numa festa da juventude,
eu lá metido... Eu não vi quem atirou. E nem podia ver, se não fiquei lá o
tempo todo. Mas tenho quase certeza que não foi nenhum dos amigos da Dedé. Eu
acho que alguém fez essa safadeza para por a culpa nos meninos, só por causa do
barulho. Eu acho que quem fez isso é alguém que não aproveitou a juventude, o
senhor não acha, doutor?"
Dedé:
"A gente só tava comemorando. A
Jujuba entrou em odonto na USP. Não é pra comemorar? O Tio Olegário viu que
não tinha nada de mais. Foi minha mãe mesmo quem pediu pra ele olhar. O senhor
acha que a gente ia ficar zuando na minha própria casa? E depois, atirar logo no pobre do Lorival,
que nunca fez mal pra ninguém! Sem essa! Eu até já falei com a Dona Catarina,
que me conhece, conhece minha mãe e conhece o meu pai... Mas ela está tão
revoltada com o que aconteceu com o Lorival, que não quis nem saber de
conversa. Disse que era pra eu me entender com o delegado. E eu juro para o
senhor, doutor, por tudo quanto é sagrado: jamais eu ia fazer ou admitir que alguém
fizesse isso com o pobre do Lorival. Foi pura coincidência atirarem nele justo
no dia da festa lá de casa. Mas não foi ninguém de lá não senhor. Isso eu juro
por tudo quanto é sagrado. Se o senhor quiser me responsabilizar pelo barulho
do sábado passado, eu até assumo, apesar de não achar que estava isso tudo...
Meu pai já me comeu a alma... Minha mãe já me falou um monte... Ainda mais
quando a Dona Catarina veio tomar satisfação por causa do Lorival. Quem atirou
no Lorival deve ter sido alguém sem alma... Acha? Fazer isso com a pobre
criatura, que não incomoda ninguém..."
Olavo, marido de Dona Zulmira:
"O Doutor Delegado vai me
desculpar, mas não tenho muito a dizer. Só sei que teve uma festa na casa da
frente, e que acabou tarde. Não sei quem foi ou quem deixou de ir, porque isso
não é da minha conta. Também não vi quem atirou ou quem deixou de atirar. Não
conheço nenhum Lorival... A minha mulher é que fica mais em casa e sabe mais
coisas da vizinhança. No sábado dessa festa, eu me deitei cedo e dormi. Não vi
nada..."
Ana, mãe de Dedé:
"Eu bem que avisei a Dedé que não
queria bagunça lá em casa. Ainda mais bem no dia em que eu e o pai dela não
íamos estar em casa. Fomos no jantar anual da firma em que o meu marido
trabalha... Mas ela insistiu tanto, pobrezinha! Disse que só iam comemorar
porque a Jujuba tinha entrado na faculdade. E eu só concordei quando o meu
irmão Olegário disse que vigiava, que eu podia sair tranqüila. E agora, veja o
senhor, que vergonha... Ter que vir até aqui na delegacia dar explicação.
Também, a Dona Catarina precisava ter dado queixa? Atiraram no Lorival, sim,
mas... E daí? Se o senhor quer saber, não é a primeira vez que atiram no
Lorival. No mês passado, aconteceu a mesma coisa, e a Dona Catarina não veio
dar queixa... Desta vez, só porque tinha uma festinha dos meninos lá em casa,
ela já achou que foi um deles... E da outra vez? Quem atirou no Lorival da
outra vez? Também aconteceu numa noite de sábado, e não tinha ninguém na minha
casa! Isso é que me deixa indignada com a Dona Catarina. Ela devia ter prova
primeiro, antes de acusar os outros... Olha a confusão que fica agora: todo
mundo tendo que vir aqui dar explicação... E, de mais a mais, lá em casa não
tem criança de fralda... E na festa da Dedé também não tinha, pois isso
eu já averigüei direitinho..."
O Doutor Delegado:
"Da outra vez que atiraram no
Lorival, foi com a mesma, digamos, com a mesma arma? Sei, sei...Está bem! É
só!"
Dona Catarina, a do Lorival:
"Está bem, doutor. Eu retiro a
queixa contra a família da Ana, vou pedir desculpas pra ela, pra Dedé, pra todo
mundo... E caso encerrado... A menina dela foi falar comigo no dia seguinte,
mas eu estava tão nervosa com o que aconteceu com o meu Lorival, que não quis
nem saber. Acho que fui um pouco precipitada em ter vindo dar queixa. As duas
vezes acertaram em cheio o coitado do Lorival. Se o senhor soubesse a catinga
que ficou... O pobrezinho tava todo melecado e arrepiado. Tive que dar banho
nele com a loção de barba do meu marido, e ainda assim não saiu o cheiro. Ainda
hoje, se o senhor for lá em casa, vai ver o coitadinho como ficou... Agora que
o senhor tá me falando que quem atirou foi o filhinho do casal que mora no
quarto andar do prédio ao lado, eu não sei nem o que dizer... Eu só acho que os
pais deveriam prestar mais atenção na criança... Deixar o menino ficar atirando
cocô pela janela... Onde é que já se viu? Quantos anos tem esse menino, doutor?
...Três? Quatro?... Que coisa! Mas, doutor, me diga o senhor que é mais
experiente nessas coisas de investigação: será que não foi o pai ou a mãe do
menino quem atirou o cocô do menino pela janela? Pra acertar bem na cabeça do
meu papagaio!... Acha que o menino ia ter uma pontaria dessas? Olha, não sei
não, heim doutor! Não é melhor o senhor investigar mais um pouco, doutor?
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*Premiado no II Prêmio Escriba de Contos - Piracicaba - 1999 - 11º lugar
*Publicado no livro "II Prêmio Escriba de Contos" - Secretaria da Ação Cultural de Piracicaba - SP -1999
*Publicado no livro "O Encantador de Passarinhos e outras histórias" - Rumo Editorial - SP - 2011
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