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22.2.17

A praia e a democracia



Alguém já disse que a praia é o lugar mais democrático que existe.  Confesso que sou da mesma opinião. Em que outro lugar é possível entrar e sair quando bem se entende, vestindo - ou não vestindo - o que der na telha, fazendo - ou não fazendo - o que der vontade? Eu acho que é só na praia.

Não consigo pensar em outro lugar em que isso seja possível. Nem mesmo no Congresso, alardeado como uma casa essencialmente democrática. Se não me engano, foi lá que construíram um tal espelho d’água. Será que é para distanciar o povo da democracia que se faz lá dentro? Não pretendo me enveredar nesse assunto, pois para isso existem os especialistas. Limito-me a falar das coisas mais ao alcance da minha compreensão.

Por isso, volto a pisar na areia. Entendo, porém, que há pequenas restrições à plenitude democrática que se apregoa existir na praia. E há de se convir que é preciso observá-las, sob pena de acabar convergindo para regimes, digamos, mais anárquicos. Não se pode querer, por exemplo, que uma praia de nudismo seja frequentada pacificamente por seminus, ou vice-versa. Mas isso ocorre apenas por uma questão de igualdade de direitos e deveres. Havendo a sutil adaptação que o caso requer, de pronto fica restabelecida a democracia. É questão apenas de uma peça a mais ou uma a menos.

Também acho muito compreensível que os amantes das praias busquem lugares ou grupos de frequentadores onde possam se sentir mais à vontade ou enturmados. Cada um tem sua praia, como também se diz por aí. Mesmo assim, pode-se perceber facilmente que a praia é inimiga da maioria dos preconceitos. Pobres e ricos convergem para as mesmas areias e abrem o guarda-sol lado a lado. Gordinhas branquelas e morenas bronzeadíssimas caminham com a mesma naturalidade pela orla, cada qual na sua mais completa liberdade de ir e vir. Nenhum preconceito: nem cor, nem raça, nem classe social, nem religião...

A praia é um espaço que tanto serve aos visitantes de um dia, que normalmente chegam em turmas numerosas e barulhentas, quanto aos que ficam uma temporada inteira. Depois que se pisa na areia da praia, todo mundo é igual. Convivem pacificamente os que cortam as águas com seus poderosos jet-skis e os que pagam cinco reais para um giro num banana-boat, com direito a tombo e tudo. Servem-se do mesmo mar.

Ao chegar à areia, estender sua esteira, abrir seu guarda-sol e sentar-se comodamente na cadeira, o indivíduo perde todos os indícios de sua origem. A partir desse ritual, não importa mais saber de onde a pessoa veio ou onde está hospedada, se é que está hospedada em algum lugar. Tanto pode ter vindo num carro do ano, importado, quanto num ônibus de excursão. Tanto pode estar se hospedando num caríssimo apartamento de cobertura, quanto numa barraca de camping, numa casa alugada ou naquele apartamento emprestado pelo cunhado e disputadíssimo nas temporadas... Que importância tem isso quando se está à beira-mar?

Outra coisa que notei, é que pouca diferença faz o tipo de petiscos que chegam às praias. Vale quase de tudo, desde o amendoim torrado ou camarão sete barbas no espetinho, até o tão decantado frango com farofa que, aliás, acaba dando margem a um dos poucos preconceitos que ainda persistem nas areias. Noutro dia, por exemplo, experimentei bucho frito à milanesa, que o Capivari trouxe para a roda na praia que eu frequento. Como gosto não se discute, eu gostei e recomendo a iguaria. Ainda mais se o acompanhamento for aquela cervejinha bem gelada, tirada da inseparável caixa de isopor que também costuma estar sempre à mão. Para os que preferem uísque, saibam que não faço a mínima restrição.

Na minha modesta opinião, a praia tem todo esse ar de democracia, sim senhor, e seja lá onde for. Fico observando o que as pessoas fazem enquanto estão na praia, e cada vez mais me convenço de que uma aura democrática paira sobre ela. Os que jogam pelada sabem bem disso. Quando a bola vai para longe, basta gritar “bola” que alguém gentilmente a devolve. O mesmo ocorre com os que preferem o voleibol. Os que ficam se empanando na areia, sabem que também poderiam empinar pipas, com a mesma liberdade. Os que se deitam na esteira para tostar ao sol sabem que poderiam apenas sentar-se à sombra usando protetor solar. E assim vai. Cada qual fazendo o que bem lhe interessa fazer, com total liberdade.

Não estou me referindo a nenhuma praia em especial, pois acredito que ao longo dos mais de oito mil quilômetros da costa brasileira, a coisa seja mais ou menos parecida, com pequenas variações. Com certeza você também já notou coisas desse tipo na praia em que costuma fincar seu guarda-sol, mas talvez nunca tenha analisado quão simples pode ser a democracia, se bem praticada.

Mas, como tudo o que é bom tem seu preço, é preciso que se tenha sempre em conta que, para chegar lá, às vezes é preciso enfrentar pequenos problemas indesejáveis. A disputa por um lugar ao sol, talvez tenha que vencer antes algumas horas de estrada entupida. E, certamente, com alguns mais apressados tentando ultrapassar pelo acostamento. Acho que esses entendem que os fins justificam os meios.
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Publicado no livro "O Encantador de Passarinhos e outras histórias" - 
Rumo Editorial - SP - 2011 


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