Poesia de minha cidade não requer compassos
Pois tudo nela é cacofonia:
Cada canto obscuro, cada sombra de viaduto,
Cada placa de contra-mão, cada indigente,
Cada acidente, cada homem vestido de terno,
Cada mulher e cada árvore moribunda,
Todas as suas mazelas, todos os seus
problemas,
Toda sua volúpia, todo seu encanto,
Toda sua grandeza, toda sua miséria,
Todas as suas cores e todos os seus segredos.
É poesia que não acaba mais.
A poesia de minha cidade não tem rimas
Pois simplesmente não precisa delas.
Desenfreada, desvairada, tresloucada,
Às vezes louca, outras vezes pouca,
Indiferente, indecente, cheia de preguiça,
Muitas vezes solidária, noutras tantas
omissa.
Pra que serve a rima nessa cidade?
Ela é tudo, rima com o que precisar e com
quase nada.
A poesia de minha cidade fica na intenção.
Que métrica há nesta cidade sem eira nem
beira?
Como marcar qualquer ritmo para este lugar?
Meninos n’algumas esquinas tampam
retrovisores com flanelas
Vendendo balas e chicletes; n’outras, há assaltos e assassinatos.
Mulheres guardam lugar na fila para por os
filhos na escola,
E nem sabem o que esperam de seus filhos nem
de si mesmas,
Mas guardam lugar na fila.
Motoqueiros alucinados chutam veículos nas
avenidas
Abrindo caminho para seu recado urgente, seu
ganha-pão.
Alguns morrem. Outros não.
Tudo é muito desigual.
Não há como metrificar esta cidade que
precisa respirar.
Talvez minha cidade nem precise de poesia
ou não queira nenhum verso para si.
Quiçá espere apenas um epitáfio.
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Apresentada na VIII Jornada Médico-literária Paulista - 2005 - Serra Negra - SP
Publicada nos Anais do Evento
Publicada no livro "Pipas no caminho e outros escritos guardados no tempo" - Rumo Editorial - SP - 2019
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