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19.3.20

Efigênia




Tá pensando que só porque a Efigênia morreu eu vou contar essas coisas? Não é não, que eu sempre falei na cara dela enquanto ela era viva. E olha que não foi nem uma nem duas vezes que eu falei. Ela sabia, melhor do que ninguém, o que eu pensava, pois eu vivia repetindo, Efigênia, Efigênia, olha lá que isso não vai dar certo. É sim, porque eu sou de falar o que eu penso na cara das pessoas e não mando recado, não senhor.  E com a Efigênia nunca foi diferente, apesar de ela achar que era pura implicância minha. Ela me dizia, larga do meu pé que da minha vida cuido eu, a mal agradecida. Tá vendo no que deu? Se ela tivesse me ouvido... Não vou dizer que ela ainda estaria viva agora, só por ter me ouvido, porque essas coisas de morrer é assim mesmo. Acontece quando menos se espera. Só que a pobrezinha morreu de um jeito... Ah, meu Deus, tanto que eu falava com aquela cabeça dura. Efigênia, não faz assim, Efigênia, que se um dia ele descobre, você tá porca na vida. Você conhece bem o teu marido Juvenal, né? Mas ela não. Achava que era muito dona do seu nariz e agora taí. Deu no que deu. Ela morta e enterrada e o pobre do Juvenal, ai coitado, como ele chorou quando ela morreu. Até me deu dó. Se bem que ele não era nenhum santinho! Eu é que sei, porque a Efigênia me contava tudo, e muita coisa eu acabei descobrindo sozinha, que a gente também não é boba. Quanto tempo ele enganou todo mundo, o cretino! Teve um dia que o Juvenal chegou em casa já passava da meia-noite, num cheiro de cerveja, que vou te falar uma coisa. Acho que foi numa sexta-feira e ninguém nem desconfiava de nada ainda. Dava pra sentir de longe o bafo de cerveja do Juvenal. A Efigênia ficou uma fera por causa da hora que ele chegou, mas não abriu a boca. Aí eu disse pra ela: você não vai falar nada, Efigênia? Saberá com quem ele estava até essa hora, bebendo feito um gambá! Se o marido fosse meu, não deixava nem entrar em casa! Mas a Efigênia, e isso ela tinha de bom, não sabia fazer mal nem pra uma mosca. Deixou o Juvenal entrar e não disse um "a". Eu tenho pra mim que foi depois desse dia que a coisa começou a desandar. Se a Efigênia tivesse brecado logo no começo, mas não, ela ficou quieta e como diz o outro, quem cala, consente. Tive um pouco de dó da pobrezinha da Efigênia, que só sabia chorar pelos cantos da casa, mas era culpa dela, que ficava de boca fechada e deixava o Juvenal fazer o que bem entendia. Em casa, ele dizia que tinha ficado no bar com os amigos, mas nas redondezas todo mundo já comentava que ele tava era enrabichado por uma boazuda lá do serviço dele, o cachorro. Eu fico indignada com essas coisas! Homem é tudo igual, eu sei, mas a pobrezinha da Efigênia não merecia isso, mesmo sabendo que ela era um pouco culpada. Eu falava isso pra ela. Eu dizia, Efigênia, porque você não mostra pra ele que é melhor que a tal da sirigaita lá do serviço dele? E ela só dizia eu mostro, eu mostro, mas vai saber se ela entendia o que eu queria dizer. Vai ver ela pensava que era fazendo a lazanha mais caprichada nos domingos! Aí, teve um dia que eu não agüentei e falei pra ela, é na cama que você tem que ser melhor, entendeu, Efigênia? É na cama e não na mesa, que comida boa qualquer um encontra em muito restaurante por aí. E a Efigênia, com aquela cara de madalena arrependida que ela fazia de vez em quando, só ficou me olhando, como se eu fosse uma rameira que tivesse falado a maior pouca-vergonha do mundo. Naquele dia eu acho que até fiquei um pouco vermelha, porque senti um calorão medonho na cara, mas, fazer o quê? Eu tinha que dizer isso pra Efigênia uma hora qualquer. Aí eu falei e não me arrependo nem um pouco. Não sei o que ela pensou de mim, mas que eu falei, falei. E de mais a mais, se ela fez ou não fez a lição de casa, não é problema meu. Eu acho que ela continuou só na lazanha, que aliás ela fazia muito bem, pois o filho duma mãe do Juvenal, marido dela, continuou chegando em casa tarde, quase todo dia. E a coitada da Efigênia sempre de boca fechada, aturando uma situação dessas. Teve só um dia em que eles discutiram feio, já devia ser mais de uma da madrugada. Acho que ela não teve mais como segurar e acabou reclamando da situação. E não é que o  cachorro do marido dela falou pra coitadinha que se ela começasse a encher o saco, ele se mudava pra casa da outra? Como é que pode uma coisa dessas! Ah, se meu finado Tonico me dissesse isso!  Eu é que tinha matado ele, e não o enfarto! Mas a Efigênia não, aquela tonta. Chorou, chorou, chorou e ainda falou meu Juvenal, não faz isso, meu Juvenal. Cachorro! E naquele dia o cretino ainda quebrou dois pratos. Eu nem me meti, porque essas coisas de marido mulher eles é que têm que resolver. Mas depois desse dia, a Efigênia começou a mudar um pouco. Não ficava mais com aquela cara de desconsolada o tempo todo. Nem se afetava com as coisas que quebravam na casa dela. Um dia era a geladeira, outro dia era a máquina de lavar e noutro era a televisão. Parecia um castigo. Como quebravam as coisas na casa dela. Quase todo dia tinha um técnico disso ou um especialista daquilo outro tocando na casa da Efigênia. E era cada visita demorada! Um dia eu até comentei com ela, porque você não faz o seu marido te comprar geladeira nova, máquina de lavar nova. Já que ele não vale nada mesmo, pelo menos isso ele tem obrigação de fazer. Do contrário, você vai ficar gastando um dinheirão consertando. Vale mais a pena comprar tudo novo. Mas a Efigênia, coitada, acho que morria de medo de pedir qualquer coisa pro Juvenal, com medo que ele fosse morar com a outra. E ficava naquele conserta que conserta que não acabava mais. Se eu fosse contar quantas vezes só o homem da televisão foi lá na casa dela... Perdi até as contas. Problema deles. Mas teve um dia que eu falei uma poucas e boas pra Efigênia. Foi no dia que ela veio me contar que estava de caso com o Zezinho  da padaria. Eu fiquei escandalizada. Eu falei, Efigênia não faz isso! Não é porque o teu marido não presta que você vai fazer igual ele. Efigênia, Efigênia. Se teu marido descobre ele te mata. Isso não vai dar certo, Efigênia. Tanto eu falava que acho que ela acabou me ouvindo, pois depois de um certo tempo ela largou mão. Bom, é melhor eu ir parando com esse assunto, porque agora a Efigênia tá morta. Que desgraça, não gosto nem de lembrar! Foi assaltada na porta do supermercado, em plena luz do dia. Luz do dia modo de dizer, vai, que já devia ser umas sete e meia da noite. Levaram uma mixaria que ela tinha na carteira e ainda atiraram nela. Coitadinha. Tanto sofrimento em vida, com um marido daqueles e ainda me acabar desse jeito, assassinada por um bandidinho pé-de-chinelo, que não prenderam até hoje. Tem horas que eu fico pensando certas coisas, mas é melhor nem falar nada. Ainda bem que aquele sem vergonha se mudou daqui. Imagina que ele teve a coragem de vir me avisar, menos de um mês depois que a Efigênia morreu, que queria trazer a desqualificada da amante pra morar aqui! Me subiu o sangue e sabe o que eu falei pra ele? Mas nem que eu estivesse morta ia acontecer uma coisa dessas! No meu quintal? Aqui não entra vagabunda nenhuma, eu disse. E tem mais, eu falei, vê se arruma outro lugar pra morar. Falei mesmo! Tá pensando o quê? Ainda bem que ele não insistiu no assunto, porque senão eu nem sei do que seria capaz. Só sei que três semanas depois encostou um caminhão e levou a mudança. Ele me pagou o aluguel direitinho, até o último tostão. Pelo menos isso o ordinário fez. Depois dessa situação toda eu vou pensar muito bem se vou alugar de novo os cômodos dos fundos. A gente nunca sabe como são as pessoas. Tá certo que hoje em dia não dá pra dispensar um dinheirinho, por pouco que seja. Pelo menos uns trezentos eu acho que vale o aluguel. O Juvenal me pagava cento e cinquenta. Bom, outra hora eu penso nisso. Só tem mais uma coisinha que eu queria dizer, porque isso fica me remoendo aqui na cabeça: no dia que o Juvenal se mudou, eu fiquei de olho. E sabe o que eu reparei? A geladeira que a Efigênia vivia consertando parecia tão nova... Não sei porque dava tanto problema. Acho que hoje em dia não se faz mais geladeiras como as de antigamente.
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Publicado no livro "O Encantador de  Passarinhos" - 
Clube de Autores - São Paulo - 2011

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