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25.3.20

A mordaça


Eram três irmãs, todas de nome Maria. A mais velha era dos Remédios, a do meio do Rosário e a caçula da Penha. Em comum, além do primeiro nome e do fato de serem todas solteiras, uma incorrigível língua ferina, da qual não escapava quase nada ou ninguém. Por essa razão não cultivavam amizades, e a vizinhança guardava-lhes prudente distância. Ainda assim não escapavam de suas maledicências, às quais procuravam não dar ouvidos, evitando certeira confusão.

Certa feita, a troco de nada, cismaram as três de infernizar a vida de um casal que morava duas casas adiante, na mesma rua. Cismaram porque cismaram, pois o jovem casal não dava um dedo de motivo para qualquer falatório a quem quer que fosse. Dos Remédios foi quem iniciou a questiúncula, falando em alto e bom som, para quem quisesse ouvir, que o rapaz não era de tomar banho. Onde já se viu! Do Rosário espalhou pela vizinhança que as cuecas dele, penduradas no varal, eram todas borradas na bunda, ao que da Penha acrescentou serem também furadas.

Como um rastilho de pólvora, as três Marias fizeram as infundadas e venenosas afirmações correrem rua acima e rua abaixo. Num instante chegaram aos ouvidos do casal. A moça quis tomar satisfações com as irmãs quarentonas, mas foi demovida da intenção pelo rapaz, que achou mais prudente não dar corda ao assunto.

Logo do Rosário percebeu que a investida não produzira efeito, e tratou de espalhar que a moça, com "aquela cara de santinha", era dada a escapadelas extraconjugais enquanto o marido saía para trabalhar. Prontamente contou com o testemunho das duas irmãs, que juravam terem visto, mais de uma vez, um homem entrar furtivamente na casa, em plena luz do dia. Desta vez a língua das Marias fora longe demais, e tão logo o burburinho na vizinhança bateu às portas do casal, houve indignação e revolta.

Nem cuecas sujas, nem traição. Foram ambos tomar satisfações com as três irmãs, pois a coisa passara da conta. Da Penha, que da janela viu o casal se aproximando, alertou as irmãs. Foram as três para o portão, onde um bate-boca interminável começou. O casal procurava manter a linha, apesar de tudo, mas dos Remédios, do Rosário e da Penha destamparam o fosso de maledicências que cultivavam, e dele saíram coisas tão sórdidas como ninguém jamais ouviu.

Ofendidos, humilhados e espezinhados pelo dantesco fuzuê, marido e mulher acharam  que o melhor seria chamar a polícia, e assim fizeram. Da rua, que fervilhava de mulheres que preferiram assistir aquele banzé todo do que à novela das oito, foram os cinco e mais duas testemunhas do casal para a delegacia, em duas viaturas.
            
Por pouco o delegado não enlouquece, pois as três Marias não se intimidaram com a sua autoridade, e continuaram com os impropérios, como três medusas loucas e alucinadas. Prender as mulheres seria despropositado, mesmo diante de tanta insolência. O delegado preferiu abrir inquérito por difamação e calúnia e liberar todo mundo, pois não queria se aborrecer com tamanha anarquia em sua delegacia.
            
Tarde da noite, ainda alguns moradores da rua aguardavam o desfecho do forrobodó, plantados em seus portões ou debruçados na janela. Mas pouco ou nada viram. O casal voltou a pé e trancou-se em sua casa. Do Rosário, da Penha e dos Remédios desceram de um taxi, e fizeram o mesmo.
            
A vizinhança foi se recolhendo, decepcionada com epílogo tão modorrento e sem graça. Esperavam tapas. Prisão, talvez. Mas, nada. Apenas as portas quase vizinhas dos grupos oponentes se fechando, e a noite assumindo seu reinado silencioso naquela rua da periferia.

            
Como explicar o que vai na alma de certas pessoas, quando não há explicação plausível a se dar? Inútil tentar. Abre-se aqui este parênteses, apenas para dizer que alguns atribuíam as sandices das três irmãs ao sobrenatural. Estes diziam que poderosas forças do mal invadiam a alma de cada uma delas, fazendo-as perpetrar as mais sórdidas maldades contra as pessoas, sem mais nem porquê. Os defensores dessa linha de pensamento acreditavam piamente na existência de caldeirões fumegantes dentro da casa das Marias, o que jamais alguém pôde provar. Outros, no entanto, reputavam o modo de ser das irmãs a causas menos espirituais. Como não se pretende aqui tomar partido, fica apenas o registro de que também a vizinhança daquela rua tinha um pouco do mesmo germe que acometia as três irmãs, razão pela qual não se pode de pronto rotular este ou aquele. Dito isto, é melhor voltar aos fatos. 
            
Dado ao que se supunha saber das três Marias, era de se esperar que tal furdúncio não acabasse num ato só. De maneira que, mesmo que ninguém dissesse mais palavra a respeito dos acontecimentos daquela noite em que foi todo mundo parar na delegacia, havia no ar uma natural expectativa quanto a uma nova investida. Era só uma questão de tempo.

E não foi preciso muito tempo para que acontecesse. Menos de uma semana depois, do Rosário tratou de fazer correr nova notícia escabrosa sobre o casal. Com o testemunho  irrestrito  das outras duas Marias, passou a alardear que o casal não tinha filhos pois Silvano, que era esse o nome do rapaz, não dava conta do recado. Da Penha logo emendou que era em razão disso que Adélia recebia visitantes em plena luz do dia, enquanto o marido trabalhava. E dos Remédios, para não perder o mote, anuiu que tanto um quanto outro, não bastasse essa pouca vergonha, ainda roubavam mercadorias no mercadinho do seu Ernesto!
            
Pronto! Desta vez Silvano quase perdeu a razão. Partiu de arma em punho para o portão das fofoqueiras, mas foi contido pelos vizinhos, que afinal, não queriam ver nenhuma desgraça. O próprio seu Ernesto aconselhou Silvano a manter a calma, dizendo que aquilo não passava de sandices sem pé-nem-cabeça.
            
Só depois de muita confusão na rua apinhada, foi que a coisa mais ou menos se resolveu, com nova comitiva adentrando a delegacia do bairro, para desespero do delegado.

*

Neste ponto convêm encurtar um pouco a narrativa, pois logo se vê que o enredo há de ser o mesmo. Só é preciso acrescentar que ainda outras vezes as Marias fizeram e falaram das suas contra o pobre casal, e que ainda outras tantas vezes foram todos parar na mesma delegacia. Fato é que a rotina das pendengas entre as três irmãs e o injustiçado casal já ia perdendo o interesse da maioria dos vizinhos. Por mais cáusticas que fossem as infundadas asneiras propaladas pelas Marias e por maior que fosse a indignação do casal, já todos sabiam que a coisa terminaria no plantão policial e dai não haveria outra conseqüência.
           
Mas as coisas iriam tomar novo rumo pelas mãos de um certo juiz, a quem chegou finalmente o processo de difamação e calúnia. Convicto de que nenhuma pena convencional que se impusesse corrigiria aquelas três quarentonas, preferiu o juiz, aplicar a chamada pena alternativa. Iriam elas, de maneira exemplar, prestar serviços à comunidade.
            
E assim foi que do Rosário, da Penha e dos Remédios receberam, com certo pânico, a terrível sentença: trabalhariam por um ano, todos os dias, seis horas por dia, como ajudantes na cozinha do hospital público do bairro. A pena parecia até bem leve, não fosse pela exigência de que toda a jornada fosse cumprida pelas Marias devidamente paramentadas, inclusive com o protetor a tapar-lhes a boca. Questão de higiene mais que necessária para o local da prestação do serviço. Mas, para todos quanto acompanharam a pendenga desde o início, e souberam da sentença, o detalhe teve outro significado. Finalmente, com extrema sabedoria e simplicidade, alguém havia colocado uma mordaça naquelas bruacas.
         
Fato é que, antes mesmo de cumprida toda a pena, do Rosário, dos Remédios e das Dores já aparentavam sensível mudança de comportamento. Eram vistas a escancarar sorrisos, sem qualquer motivo aparente. A expressão angelical de quem tinha a alma limpa que passou a andar estampada no rosto das irmãs, causou certo espanto, a princípio.

Os que defendiam causas sobrenaturais diziam que a mordaça teve grande efeito moral. A vergonha da boca tapada acabara expulsando definitivamente os demônios daquelas almas. Mas há quem diga que o que deu jeito mesmo na questão foi Possidônio, chefe de cozinha lá no hospital. Este sim, de alma boníssima, o tempo todo deu seu apoio e consolo às três Marias, visitando-as todos os dias depois do expediente. 


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Publicado no livro "O encantador de passarnhos - e outras histórias"
Editora Clube de Autores - SP - 2014

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