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28.2.16

Pipas no caminho














Há tempos havia se esquecido como eram certas coisas, ainda que todo dia soubesse delas pelo jornal e pela televisão. Era como se pertencessem a um mundo distante. Por isso surpreendeu-se quando as ruas foram se tornando mais estreitas, como se quando criadas não tivesse havido espaço nem pressa. Largavam-se em traço torto, ora esgueirando-se de buracos que pareciam sempre ter existido, ora insinuando-se, corajosas e íngremes, por encostas e abismos intermináveis. Sempre bordejadas por milhares de paredes de tijolo aparente, estampando os sonhos inacabados de tanto zé e de tanta maria que um dia precisou se pendurar por ali, desafiando a caótica gravidade.
            
Percorreu aqueles caminhos com medo e ansiedade, ainda que fosse uma manhã de sábado e as ruelas e portas de comércio fervilhassem de gente. E olhava o rosto de cada homem e mulher, todos prenhes de simplicidade, como tentando adivinhar-lhes a intenção e os gestos. Temia que em determinado momento não houvesse mais saída daquele labirinto intrincado que teimava em serpentear à sua frente. Esperava por uma nova paisagem após a próxima curva. Mas os tijolos pareciam os mesmo, as antenas se repetiam e os varais tinham sempre roupas da mesma cor. No céu impo e claro, pias se contorciam desenhando arabescos de rabiolas e fios cortantes. Já se sentia sufocar dentro do carro quando avistou uma placa indicando para o centro. Alívio. Nem se apercebeu em que ponto as ruas começaram a se alargar de novo. Mas viu que ainda havia pipas no ar.

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Publicado na coletânea "A Pizza Literária - sexta fornada"
Legnar Informática e Editora - SP - 2000

ISBN - 85-86556-32-7 

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