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13.3.16

Olhares



Gastava seus dias olhando a rua que se repetia, mesma. Eternamente igual em seus muros e pessoas. Trancado num silêncio imóvel, entrevado na mesma poltrona. Somente os olhos iam e vinham de um lado a outro da mesma paisagem. A não ser quando chovia, pois então tinha outras coisas para olhar. As gotas escorrendo pelos vidros, arredondando as formas costumeiras. Caleidoscópio. Cada caminho pingo seguia sua gravidade em rabiscos diversos. E seu olhar seguia o caminho vertical das gotas que renasciam com destino já traçado. Ah! Em dias de chuva é que era bom olhar a rua, pois havia encanto e magia nos cogumelos que brotavam na calçada e nos córregos que surgiam murmurejando melodias suaves.

Mas nem sempre chovia para que pudesse existir esse encantamento. Na maioria do tempo, aconteciam aqueles dias compridos e cheios do tédio modorrento da rua sempre igual. Os raros automóveis que riscavam a paisagem não tinham graça nenhuma. Eram traços muito ligeiros e repentinos que os olhos nem sempre conseguiam acompanhar. Não valiam o tempo da espera. Não eram como as gotas no vidro da janela em dias de chuva, pois estas podiam ser aprisionadas e mantidas como reféns de seus olhos. Tudo o mais eram imagens que fugiam, zombando de seu silêncio e de sua imobilidade, algozes de sua paralisia. Não sabia ao certo se odiava esses dias sem chuva. Talvez não, pois já se resignara com seu destino. Mas ficava o tempo todo esperando que o céu escurecesse para poder aprisionar suas gotas no vidro da janela.


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Publicado na coletânea "A Pizza Literária - sexta fornada"
Legnar Informática e Editora - SP - 2000
ISBN - 85-86556-32-7


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