Aos poucos as pessoas foram
recolhendo suas cadeiras e a areia foi se revelando, quase nua, salpicada
apenas por alguns detritos, restos da manhã. Aqui e ali um guarda-sol reticente
e com preguiça de fechar suas cores vivas. Nuvens escuras, que a princípio
apenas esgarçavam o céu, ainda a pouco radiante de luz e azul, se avolumaram
sorrateiras. Uma névoa espessa se formou
ao longe, disfarçando a paisagem distante naquela bruma que eu já conhecia. Os
primeiros pingos foram mal percebidos pelos meninos indiferentes ao céu que se
fechava rancoroso. Então choveu, e a tarde ainda ia pela metade nessa hora. Um
aguaceiro e tanto, generoso, amainando um pouco do calor intenso e quase
sufocante. Os retardatários ou incrédulos de que chovesse, correram em busca de
algum abrigo. Outros, no entanto pouco se incomodaram, pois tinham urgência em
aproveitar aquele dia e lugar.
Não era a primeira vez que eu via
esta cena ou dela participava. Tudo isso me veio aos olhos como se pertencesse
a um filme que se repetia, quadro a quadro. Recolhi-me, diante daquela falta de
novidades, e da porta aberta de meu trailer
fiquei vendo os pingos saltitando nas poças. Soldadinhos. Lembrei-me de uma
velha tia. São soldadinhos pulando, ela dizia. Mas não atinei até hoje porque
razão os pingos de chuva seriam soldados e porque cargas d’água soldados
haveriam de pular daquele jeito. Aí, uma coisa foi puxando outra no pensamento,
e cargas d’água parecia ter certa lógica naquele momento. Aquilo era uma carga
d’água, jorrando ininterrupta, como se saísse de uma grande esponja espremida
entre os dedos. E me diverti pensando que tamanho deveria ter a mão que a
espremia daquela maneira, e quanta água havia na esponja, certamente sugada do
mar lá fora, que nem mais se ouvia, tamanho era o barulho da chuva.
Assistir a chuva criar suas poças e
enxurradas foi ficando monótono demais e acabei cochilando na cadeira de praia
em que eu havia me recostado comodamente. Então o mar, erguendo-se de uma só
vez num grande redemoinho, começou a subir e subir, até que todos os seus
abismos e entranhas ficassem expostos como as vísceras de um animal abatido. E
tamanha era a força daquele turbilhão, que as árvores foram arrancadas com
todas as suas raízes e também subiram com a água daqueles oceanos que agora
pairavam sobre minha cabeça. Estranhamente não havia relâmpagos ou trovões, mas
somente um barulho rouco e interminável, como somente o turbilhão de todos os
mares poderia ser capaz de fazer. E então toda aquela gigantesca forma plúmbea,
depois de girar em grande velocidade naquela altura incomensurável que
alcançara, desabou novamente, num único movimento. E cada árvore que caía
ficava com suas raízes para cima, enquanto as águas dos mares que despencava
arrancavam-lhes ou últimos torrões da terra que nelas ficara presa.
De repente, acordei de um pulo e
demorei alguns segundos até perceber que ainda não era a hora do apocalipse.
Suspirei aliviado e me acomodei melhor na cadeira quando me certifiquei que
apenas a chuva se intensificara lá fora, que as árvores estavam firmes e
fincadas ao solo, e especialmente que ninguém percebera minha aflição naquele
momento. Já não estava tão claro e uma luminosidade artificial tremulava
refletida na imensa poça que eu podia vislumbrar. A tempestade teria tornado a
tarde mais escura ou já era noite? Nesse momento percebi que alguém se
movimentava a poucos metros de minha porta, como se puxasse algo da imensa
moita de bambu que oscilava sob a chuva abundante. Era o administrador do camping, tentando consertar um cabo
elétrico. Ergui-me e ofereci ajuda. Depois fiquei sabendo que algumas barracas
foram inundadas pelas águas. Numa delas havia senhoras e crianças. Procurava-se
acender as luzes de um trailer
desocupado, logo à frente, para acomodar os náufragos daquele dilúvio.
Com a solidariedade comum a todo
campista, em poucos minutos formara-se um mutirão de socorro. Lanternas,
alicates, cabos, vassouras, pás, tudo foi aparecendo como que por encanto e as
luzes do trailer vazio se acenderam,
sob a angustiante expectativa das encharcadas vítimas e do não menos encharcado
grupo de socorro. Minutos depois,
curiosamente, a chuva cedia e apenas alguns pingos ralos estalavam nos telhados
de lona. As pessoas voltaram a circular, cada vez em maior número, desviando
das poças de lama e água. Animadas, falavam em voz alta. Quase todas traziam
uma garrafa debaixo do braço e rumavam para o portão que levava à praia. Só
então eu fui me dar conta que faltava muito pouco para o fim do último dia do
ano.
Fomos todos esperar que algo
acontecesse lá fora, na praia. Era inacreditável, mas havia alguma estrela
teimando em luzir em meio a nuvens esparsas que ainda tomavam conta do céu. As
areias fervilharam de gente, indiferentes às estrelas ou ao que mais houvesse
no céu. Mas era para o céu que olhavam e era dele que esperavam alguma coisa,
os olhos faiscando. Em dado momento, cada qual em sua própria cronologia contou
os segundos. Espocaram os primeiros fogos, que logo inundaram de cores e sons toda a orla. E cada olhar refletiu pontos luminosos, de
inúmeras cores e anseios. A fumaça da festa pirotécnica começou a esconder as
luzes mais distantes, vagarosamente, imitando a bruma daquela mesma tarde. Em
pouco tempo voltou a chover e logo tão intensamente quanto antes. Custei a
dormir na primeira noite de ano novo, toda ela debaixo de novo aguaceiro.
Talvez com receio de voltar a sonhar com o fim do mundo. Afinal ele não
aconteceu, exceto pelos muitos náufragos daquele camping e pelas inúmeras famílias que começaram o novo ano sem ter
onde morar. Também me pareceu um filme já visto aquelas cenas de casas
destruídas por enchentes e desmoronamentos que a televisão mostrava nos
primeiros dias deste ano que mal começava.
***
Publicado nos livros:
Antologia Paulista - vol.2 - Legnar Editora - SP - 2000
Pipas no Caminho - e outros escritos guardados no tempo - Rumo Editorial - SP - 2018
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