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7.10.18

Aquela mulher que comeu o tempo



A São Paulo do meu tempo de menino era cheia de histórias e mistérios. Na rua em que morei, então, nem se fale. Pois havia nela uma determinada casa e, nessa, vivia certa mulher. Naquela época o pessoal da rua já dizia que ela era meio bruxa. Falavam que seu vestido era puxado para o escuro, de cor indefinida entre aquele tom de cinza mortífero e a névoa das manhãs cheias de bruma, feito os fogs lá de Londres, que eu nem sabia direito onde ficava; era a cor da morte. Ela vestia a cor da morte, diziam. E isso me dava um pouco de medo. Não muito, pois nem tão perto de mim ela chegara até aquele momento para que eu pudesse ter visto direito essas coisas das cores que ela vestia e pudesse sentir medo. Mas fiquei com medo, muito medo, assim mesmo, só de imaginar o cheiro que ela poderia ter. E assim a coisa ficou por algum tempo.

E diziam que ela cheirava a passado e a caldeirões fumegantes. Não sei que cheiro pode ter o passado. Nem os tais caldeirões. Penso nisso apenas quando me vem na memória algum cheiro como o que deve ter ficado registrado n’algum canto de mim, meio escondido, e apenas quando penso na canja de galinha que minha mãe cozia com a maior delicadeza. Se o passado cheira assim, eu não deveria me preocupar. Mas o cheiro a que todo mundo se referia era outro. Acho que fazia referência a coisas mórbidas, funestas e amedrontadoras, como provavelmente deve ser o cheiro da morte e dessas coisas cheias de mistérios. Mas como eu desconhecia tudo isso me dava apenas um pouco de apreensão. Um pouco não. Na verdade, bastante. Coisa muito esquisita.

Até que num fim de tarde, quase noite na verdade, quando aquela penumbra indefinida das tardes de outono assume a cor de tudo e de quase nada, eu topei com ela. Cara a cara! Tremi e paralisei. Soube o significado do tal frio na espinha. Ela me olhou e nem sei se olhei para ela ou se estava apenas hipnotizado. Coisa de um segundo ou de uma eternidade, não lembro direito. Então ela sorriu e de seus lábios carnudos e vermelhos surgiu aquela alvura de lua cheia. Coisa indescritível. E eu me encantei com o sorriso, como se estivesse diante de uma vampira. Mas ela não era isso, pois não tinha caninos e muito menos cravou minha jugular com qualquer coisa pontiaguda. Sei que ela cheirava bem, assim como uma primavera fresca, nova, florescente e suave se insinuando. Nada que lembrasse a morte, como eles diziam. E a cor de suas vestes então... Ah, aquela cor... Era apenas um resplendor indescritível.

E foi desde então que, passado o vislumbre, cada um seguiu seu caminho. Ela foi deixando pegadas cintilantes, que nem sei descrever. Eu fui para o lado oposto, sem olhar para trás, com medo de me tornar uma estátua de sal. E nunca mais esqueci aquele perfume nem a visão da roupa que ela não vestia. Certamente era uma visão que o pessoal da rua nunca tivera. E que nem sequer imaginava. Que dirá então aquele inesquecível aroma que exalava de sua passagem. E até hoje ela ficou marcada no meu pensamento, num dia qualquer do tempo da minha vida, que naquele instante ela teve o dom de paralisar. O resto ela comeu. Minha lembrança reteve aquele perfume e o resplendor de sua passagem. Talvez ela realmente fosse uma bruxa. 

***
Publicado no livro "Universo Literário" 
Rumo Editorial - SP - 2018

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