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24.12.08

A Praia do Capivari

















Hoje vou contar para vocês algumas coisas simples ocorridas na praia do Capivari neste verão, mero registro de uma amizade que tem me rendido boas histórias nos últimos tempos, entre as areias remexidas de uma e outra maré. Antes que esta frase cause estranhezas de qualquer espécie, quero deixar claro que estou falando da praia do Capivari, e não da Praia de Capivari, pois todo mundo sabe que essa simpática cidade fica no interior paulista e portanto não tem praia.

Só para dar um pouco de verossimilhança a estas linhas, me cumpre esclarecer que a tal praia do Capivari a que me refiro fica no litoral norte, mais precisamente em Bertioga, e seu nome oficial é Praia do Indaiá. Pronto! Feitas as apresentações, mais do que necessárias em tão estranha definição geográfica, convém ainda explicar melhor porque chamo a Praia do Indaiá de praia do Capivari.

Nem sei há quantos verões eu conheço o Capivari. Sei que faz tempo.
— Aneas, - me disse ele outro dia, entre uns goles de cerveja Lecker gelada. - Você vai ter que escrever Aneas, pois se me chamar simplesmente de Capivari ou Eneas, ninguém vai saber de quem se trata.

Então é outra coisa que fica aqui esclarecida: quando eu citar Capivari, estou me referindo ao pacato Aneas, boa prosa, sotaque interiorano arrastado como todo bom sotaque do interior deveria ser.

Mas, como eu dizia, nem sei há quanto tempo eu conheço o Capivari. Sei que naqueles dias em que nos conhecemos, o Adriano ainda não tinha nos deixado, num desses caprichos bestas do destino, e lembro que naquele tempo um lampião de gás iluminava toscamente nossas barracas no Jobeca Camping, na Praia do Indaiá.

Lembro também que Capivari tinha no rosto, ainda hoje sereno e pacato, uma serenidade ainda maior e uma alegria quase indecifrável. Seu rosto não mudou muito, eu diria, exceto por algumas rugas quase imperceptíveis que o tempo e a vida acabaram por lhe impor. Mas essa marca do tempo não fica visível na fisionomia do Capivari, por mais que passem os verões.

Peço até desculpas por estar me excedendo em explicações, mas aqui vai mais uma: eu conto o tempo de minha amizade com o Capivari não pelos dias, mas pelos verões, pois só o vejo em curtas semanas de férias de verão, quando compartilhamos as mesmas areias. Capivari, Maria e Daniele só aparecem no camping para as férias de verão. No resto do ano eles nos privam de sua presença, com mil e uma desculpas, entre distância e afazeres. Mas nos verões Capivari não falha, como se com isso quisesse dizer que é o tempo suficiente para nos brindar com sua simpatia, com suas histórias e com seus quitutes.

Domingo passado, Capivari me convidou para um gole de uma cachaça especialmente amarela e saborosa em seu trailer.

— Essa é da melhor - ele me disse, enquanto vertia um generoso gole num grande copo aproveitado de alguma geleia ou requeijão.

— Prove! E então? É do melhor barril de carvalho de um amigo meu lá de Capivari - ele me disse com aquele sorriso peculiar.

Esperou que eu sentisse o sabor da bebida e depois confidenciou:

— Esta cachaça é pra comemorar, pois hoje eu fui adotado!

Quase engasgo com a cachaça, estranhando aquela euforia fora de hora e propósito, e já fui logo fazendo cara de quem quer explicação. Capivari alargou o sorriso, quase matreiro, e me disse:

— Vamos lá fora que eu vou te apresentar para a Tuti. Ela é a coisa mais linda deste mundo. E me adotou.

Nem sei o que pensei diante daquela empolgada alegria. Que história era essa agora de Tuti e de adoção? Curioso, segui o Capivari, copo na mão, rumo à praia lá fora, onde o sol de Bertioga já se fazia presente com a pontualidade de todas as manhãs de verão na Praia do Indaiá.

Então conheci Tuti. Junto à cadeira do Capivari, já instalada desde as primeiras horas do dia, vislumbrei uma cadela de pêlo pardo, orelhas caídas e olhar preguiçoso. Com a nossa presença, a cachorra ergueu as orelhas e abanou ligeiramente o rabo.

— Essa é a Tuti! - me disse Capivari, com o sorriso alargado de quem estava de bem com o mundo.

A cadela fez festa para Capivari, mas mostrou seus dentes para mim, sinal de que não estava disposta para qualquer outra amizade. Fiquei meio de longe, vendo Capivari afagar a cabeça da cadelinha e logo entendi porque ele me disse que fora adotado pela Tuti. Vi quando ela pôs para correr a moça que distribuía os saquinhos plásticos da Operação Praia Limpa, e vi também ela rosnar para o sorveteiro. Uma clara demonstração de sua preferência pelo meu amigo Capivari, a quem protegia, não permitindo que ninguém se aproximasse. A cadela havia mesmo adotado o Aneas.

No sábado seguinte, quando retornei para o Jobeca depois de uma semana de trabalho, fiquei sabendo que Tuti havia mordido a Dulce, nossa vizinha de trailer, que em razão disso estava tomando injeções. Soube também que por causa deste incidente, o PT, outro amigo nosso, acabou levando a cadela em seu carro para bem longe do camping. Quando encontrei o Capivari naquela manhã, ele me disse que estava muito triste com a partida da Tuti. Estava se sentindo meio órfão.

Mas logo sorriu e me apresentou Marinheiro, um irrequieto vira-latas preto. Segundo Capivari, o seu dono era um pescador ali do local e o havia abandonado, depois de ter passado da conta na cachaça.

— O homem estava encharcado e se esqueceu de embarcar o pobrezinho. - explicou Capivari.

Disse-me também que o cachorro ficou pela praia, sem eira nem beira, olhando o barco de seu dono que adentrava o mar. Olhava como se tivesse certeza da volta de seu dono, ou como se acreditasse que jamais o veria. Capivari afagava a cabeça do cão abandonado e pedia para que ele se deitasse sob aquela mesma cadeira de praia onde antes fizera Tuti se deitar.

— Olha a tristeza do bichinho...

Nem precisei ouvir ou ver mais nada para saber que Capivari adotara Marinheiro, como talvez adotasse qualquer cãozinho triste que viesse até ele. Ou melhor, como ele preferia dizer, eram os cães que o adotavam. Fiquei curioso com aquela empatia gratuita entre Capivari e os cães e perguntei qual era o segredo. Alisando a cabeça do vira-latas preto ao seu lado ele me disse:

— Amor! Eu só dedico amor aos bichinhos.

Bem, mas esta não é uma história de cães abandonados, pois certamente há muitos deles vadios e sós neste mundo. Se narro estes fatos é somente para tentar mostrar algo da personalidade desse meu amigo de gestos calmos e sotaque interiorano que conheço há alguns verões. Ele está na sua praia. Ora agradando cães tristes e sem esperanças, ora nos alegrando com sua prosa alegre e sem as marcas que a vida já lhe impôs.

Eu poderia muito bem começar a dizer algo sobre os dotes culinários do Capivari, mas acho que isso vai ficar para outra ocasião, pois merece uma história à parte. O que importa é que todos saibam que nas areias do Indaiá, pelo menos uma vez por ano, circula um amigo meu, batizado Aneas, mas que todos chamam simplesmente de Capivari, a quem eu dedico estas linhas e a Praia do Indaiá.

Afinal, é lá que ele frita seus torresmos, prepara seus petiscos de fazer inveja a qualquer gourmet, serve aquela cachaça amarela de dar água na boca e de quebra ainda adota seus cães. Indaiá é a praia do Capivari durante o verão de todos os anos e é lá que nos encontramos para algumas manhãs de prosa à toa sob o sol costumeiro, para os aperitivos e para as iguarias que um dia ele ainda vai me ensinar direitinho como é que se faz.

Com seu jeito simples e rotineiro, o Capivari, quer dizer, o Aneas, vem fazendo da praia do Indaiá um refúgio de algumas virtudes do ser humano, que só com o vagar de muitos verões eu pude começar a compreender.

***

Publicado no jornal "Correio de Capivari" - 9 de fevereiro de 2000

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