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6.12.13

O que fazer com quem chega na janela?
















No caminho de casa até o trabalho existem justos vinte e seis cruzamentos, dos quais dezoito possuem semáforos. Inevitável parar em pelo menos quinze destes últimos, tendo em vista que o volume de automóveis nesta cidade é algo assustador. E em toda parada, nem seria preciso mencionar, acontece uma abordagem na janela do carro. Esse é o ponto. A abordagem. A terrível e certa abordagem. Acho que já sou portador da S.I.A.P.J.C. - Síndrome da Inevitável Abordagem Pela Janela do Carro. Para quem não sabe, cientistas já identificaram o vírus que produz a doença, embora não tenham conseguido isola-lo. Até o momento não existe cura nem vacina. O único meio capaz de evitar é a prevenção.

Treis por deis real
Variados são os agentes causadores da SIAPJC, cada um com uma característica de atuação diferente sobre o organismo, razão pela qual ainda não há progresso dos cientistas em seu combate. E como o único meio possível de evitar a SIAPJC ainda é a prevenção, vamos fazer uma breve análise de alguns dos agentes, com sua forma de atuação sobre o organismo e as possíveis estratégias de prevenção.    O agente mais comum é o que faz a abordagem vendendo alguma coisa. Conhecido como "treis por deis real", eles vendem balas, frutas, chiclete, guarda-chuva, suco de laranja, ferramenta, bicho de pelúcia, óculos escuro, cocada, sacos de lixo, chocolate, água mineral, protetor solar de para-brisas, etc., etc., etc., etc.. Incontáveis eteceteras. Conforme a época do ano, os "treis-por-deis-real" podem variar a mercadoria negociada. Assim é que você poderá se deparar algum dia destes com agentes tendo nas mãos, desde ovos de páscoa, bandeirinhas do Brasil e caixas de rojão, até barbas postiças para Papai-Noel. Já tive oportunidade de ver um destes últimos. O que me causou surpresa, no caso, é que estávamos no mês de junho.
       
A sua forma de ação é sempre perigosa, pois é renitente e agressiva. Chegam a colocar o produto no seu colo. Começam com a oferta de dois por dez, e chegam à perigosa paridade de dez por dez. Este é o momento mais perigoso para a contaminação.

Andei pensando nas possíveis formas de combate a esta espécie de agente transmissor da síndrome, mas não cheguei a nenhuma conclusão. A idéia mais brilhante que pude ter foi a de carregar no carro um exemplar de toda a gama de produtos oferecidos. Assim, quando acontecesse a abordagem eu diria simplesmente "obrigado, eu já comprei", e me livraria do ataque. Mas desisti logo da idéia, antes de tentar colocá-la em prática. Seria preciso trocar meu carro por outro maior, uma Van, quem sabe.

Panfletus-mórbidus
Outro agente transmissor bastante comum nos cruzamentos é aquele que ataca distribuindo papéis, conhecido como "panfletus-mórbidus". Penetram por qualquer fresta que houver no vidro da janela de seu carro. E tome panfleto de imóvel, panfleto de convênio médico, panfleto de promoção de supermercado, panfleto de curso de computação, cabendo também neste caso vários eteceteras. Da mesma forma, o material distribuído poderá variar, dependendo da época. Na de eleições, por exemplo, é quando seu carro é inundado pelos santinhos de imaculadas fisionomias de pretendentes aos cargos em disputa.

O agente tipo "panfletus-mórbidus" não ataca isoladamente. Costumam agir com maior incidência nos finais de semana, e normalmente em bandos numerosos. Não é dos mais perigosos, mas mesmo assim são bastante inoportunos. Não têm a mesma agressividade que o agente "treis-por-deis-real", mas têm muita volúpia em realizar sua tarefa. Chegam a lhe entregar sete ou oito panfletos iguais de uma só vez.

Para estes, tentei uma estratégia de combate que achei que fosse dar resultado, e que se resumia no seguinte: o panfleto que eu recebia numa esquina, eu tentava entregar na próxima esquina, ao "panfletus-mórbidus" seguinte. Uma troca justa, na minha opinião.

Mas o resultado foi altamente negativo. Alguns simplesmente se recusavam, bastante ofendidos, a receber o meu panfleto. Outros o apanhavam, com ar meio abobalhado, sem entender o que estava acontecendo. Poucos segundos depois, passados os momentos de surpresa, atiravam o papel na via pública. Vai daí, que para não me pesar na consciência a responsabilidade indireta por emporcalhar a cidade, o paliativo que decidi adotar foi o de levar toda a imundície de papéis para casa, e despeja-la adequadamente no lixo, acondicionada em saco apropriado. Quanto ao fato de minha mulher andar reclamando  em relação ao aumento de consumo de sacos de lixo lá em casa, esse é um problema para resolver em outra oportunidade.

Limpa-vidros
Mais um tipo de agente causador da SIAPJC que se pode ver com extrema facilidade nos cruzamentos é o conhecido como "limpa-vidros". Este é perigoso, sem contar que seu aspecto normalmente não é dos mais amistosos.

Ele chega atacando. Você está acabando de parar o carro, o "limpa-vidros" caminha rapidamente em sua direção, e num piscar de olhos, zás: um jato de água suja, às vezes misturada com sabão, atinge em cheio o seu para-brisas. Já é tarde para qualquer reação. Ato contínuo, o agente "limpa-vidros" passa a esfregar o rodinho, invariavelmente defeituoso, que tem como consequência, além de não retirar a água suja despejada, possíveis riscos no vidro de seu carro.

Chega a ser assustador. Para evitar esses ataques, você pode, ao perceber a aproximação de um agente "limpa-vidros", utilizar uma das seguintes alternativas:
        a) agitar freneticamente os braços e acionar insistentemente a buzina, pois isso poderá assustar o tal, ou então fazê-lo entender que você não pretende ser atacado. O risco desta alternativa é você ser multado pelo marronzinho da esquina por acionar a buzina em horário e local não permitidos;
        b)ligar o limpador de para-brisas do seu carro, que naturalmente sinalizará negativamente à intenção do agente "limpa-vidros", além de dificultar a sua ação. Só que você corre o risco de o agente viral tentar agarrar e quebrar o limpador de para-brisas de seu carro para "trabalhar" ;
        c)ou então, andar sempre com os vidros do carro bem limpos e brilhantes. Mas, de antemão, aviso aos que pretenderem utilizar este método, que ele dificilmente inibe a fúria do agente "limpa-vidros".

Porta-faixas e Porta-sacos
Tem um outro tipo de agente que poderá causar a Síndrome da Inevitável Abordagem Pela Janela do Carro. Estes travestem-se com ares altruístas, e procuram atingir principalmente as pessoas que têm o coração mais mole. É um perigoso ponto fraco ter o coração mole nessas horas. É conhecido como "porta-faixa-de-SOS".

Também atacam em bandos, e agem assim: ao acender-se a luz vermelha do semáforo, estendem uma faixa um tanto rasgada e encardida (sinal de incontáveis ataques). Antes que você comece a ler os dizeres da faixa, que normalmente se refere a arrecadação de fundos para operar pessoas desconhecidas, de doenças ainda mais desconhecidas a abordagem já estará acontecendo em sua janela.

Enquanto um ou dois agentes "porta-faixa-de-SOS" seguram a tal faixa estendida, estratégicamente amarrada a um poste, outros agentes, com saquinhos coletores, estendem os braços para dentro de sua janela pedindo qualquer quantia. Estes últimos são uma sub-espécie do agente "porta-faixa-de-SOS" e são conhecidos como "porta-sacos". É, pelo menos constrangedor. Você fica completamente imobilizado diante do ataque rápido e fulminante.

Eu não quero recomendar nenhuma estratégia de combate aos agentes "porta-faixa-de-SOS" ou "porta-saco", somente porque acho que aqui a atitude tem que ser muito pessoal. Como saber se existe a tal pessoa precisando de ajuda? Se existir e você não contribuir, ficará o peso na consciência caso a pessoa não venha a se curar, ou simplesmente morra? Você nunca ficará sabendo o resultado.

Li um dia desses uma reportagem que mencionava casos de pessoas que haviam morrido vários meses antes, e continuavam a ter seus nomes nas faixas dos agentes "porta-faixa-de-SOS" espalhados pela cidade, enchendo os saquinhos coletores dos "porta-sacos". Pra você ver como é que é. Como é minha ação nesses casos? Sei lá. Depende do dia, da abordagem, do coração, quer ele esteja mais ou menos mole no dia... Sei lá.

Tio-me-dá-um-trocado
Mas não se esgotaram ainda os agentes causadores da SIAPJC. Tem um tipo que vem se avolumando cada vez mais nas esquinas. Não vendem nada, não limpam o vidro, não entregam nenhum papel... Quer dizer, às vezes até entregam, mas passam recolhendo antes do sinal abrir, nas expectativa de que haja um trocado junto. Trata-se do agente "me-dá-um-trocado". Simplesmente estendem a mão e esperam para ver o que dá. Se der alguma coisa bem, se não der...

Podem ser grandes (os verdadeiros "me-dá-um-trocado"), mas os que mais se vêem pelas esquinas são os de reduzido tamanho, sempre molambentos e com a cara suja, estes conhecidos como "tio-me-dá-um-trocado". Se você reparar direito, porém, verá que a pouca distância encontra-se um agente "me-dá-um-trocado", de tamanho maior, esperando pelo resultado. É a exploração dos explorados.

Alternativas? Teve um amigo meu que tentou uma. Cansado de dar moedinhas a cada "me-dá-um-trocado" que aparecia na janela de seu carro, e bem porque moedas de dez centavos para baixo são muito mal recebidas nesses casos, ele pensou: "Se estão pedindo um trocado pra comprar pão e leite, eu posso ajudar se der o pão em vez do trocado". Com a sensação de quem tinha descoberto a grande solução, lá foi meu amigo à padaria da esquina e comprou uns dez pães. Acomodou o saco no banco ao seu lado, e arrancou feliz rumo ao trabalho, na expectativa de que aparecesse o primeiro "me-dá-um-trocado" do dia.

Não demorou mais que dois semáforos. Chega o pequeno remelento na janela e estende a mão. Meu amigo lhe estende um pão. O moleque não aparenta surpresa. Pega o pão e morde. "Eureka! Deu certo!" Pronto, coisa mais simples de se resolver. Esquina seguinte. Outro menino estendeu a mão. Outro pão. Outra mordida. "Ô tio, mas não tem nada dentro?" Meu amigo guardou o resto dos pães e fechou o vidro do carro até chegar ao trabalho.

Malabaris-improvisatus
Limões, bolinhas de borracha, bolas de pano, laranjas, pedaços de cabo de vassoura e qualquer outra coisa que se imagine que possa ser atirada para cima serve ao "Malabaris-improvisatus". Podem agir tanto de forma isolada como em duplas ou trios. Quase sempre o menor empoleira no ombro do maior. O de cima atira as bolas para cima e as passa de uma mão para outra, raramente com muita destreza. O número improvisado dura menos que dez ou quinze segundos, ou até que as bolas caiam no chão, Aí eles se aproximam para pegar o cachê.

Embora existam os verdadeiros artistas de rua tentando ganhar a vida dessa forma, a maioria deles é de crianças molambentas ou esfarrapadas. Certamente ganhariam muito mais se estivessem na escola, preparando-se para algo melhor que se equilibrar perigosamente entre um intervalo e outro dos semáforos.

Perdeu 
Nada mais perigoso e nocivo no entanto, quando quem se aproximar da janela de teu carro no semáforo estiver portando uma arma. Algumas vezes nem dizem nada. Simplesmente atiram. Perceberam a dificuldade que os cientistas terão que enfrentar até achar a cura da SIAPJC? 

Na minha opinião, qualquer coisa que nós, simples mortais, inventemos para tentar resolver o problema, por mais engenhosa que seja ideia, não dará o resultado esperado. Fechar o vidro? É como fechar os olhos, pois os agentes vão continuar alí, com o modo de operar que lhe seja próprio. Essa questão necessita mais que estratégia de defesa bolada pelos motoristas. Mas estes não tem capacidade para tanto. Eles não têm o "puder". E os que estão no "puder", estão pouco se lixando. São os piores e mais vorazes.


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