Era
uma manhã qualquer do mês de outubro de 1962. As crianças do então curso
primário do Grupo Escolar Dr.Murtinho Nobre chegavam aos bandos para o início
das aulas daquele dia. Alguns vinham acompanhados das mães. Muitos sozinhos. A
calçada em frente à escola fervilhava de uniformes azuis e brancos. Azuis eram
as calças curts dos meninos e a saia de pregas das meninas. As camisas,
brancas, todas elas.
O guarda-civil, impecavelmente vestido de azul marinho, quepe de ponta, aba
arredondada, com o símbolo da corporação reluzindo ao sol, parava vez por outra
o trânsito dos poucos carros de então para a travessia de mães e crianças. O
burburinho soava alto. Gritos e risos misturavam-se ao apito do guarda. José
era seu nome. “Zezinho” para as crianças e mães acostumados a vê-lo na porta da
escola há longo tempo.
No
portão, mães beijavam crianças se despedindo e desejando boa aula. Os que
vinham sós acotovelavam-se querendo entrar. Dona Carmela, gorda e grisalha
inspetora, vigiava atenta cada movimento das crianças que adentravam o portão
estreito que dava acesso ao corredor em declive. No final do corredor, o pátio
coberto era uma grande algazarra. Meninos corriam de um lado para outro, alguns
portando as malas a tira-colo, outros de mãos vazias. Num canto do pátio, muitas
malas se amontoavam, misturados a algumas blusas de frio azuis, que uma ou
outra mãe mais precavida fizera o filho vestir antes de sair de casa. Afinal, era
primavera, e a temperatura bastante agradável nas primeiras horas da manhã.
As
meninas reuniam-se em incontáveis grupos, onde quatro delas, no centro de cada
grupo, recitavam rápidas estrofes enquanto as mãos se cruzavam e as palmas se
juntavam, em movimentos precisos. Algumas meninas também corriam, juntando-se à
euforia mais acentuada dos meninos. O pátio se enchia mais de crianças a cada
minuto. Cada um que chegava juntava-se ao seu grupo e à sua brincadeira.
Uma
campainha, estridente e em alto volume, alterou de repente o comportamento de
todas as crianças. O pátio emudeceu. A correria foi paralisada como por
encanto. Os versos das meninas silenciaram e as mãos pararam de bater. Nenhum
movimento. Uns poucos ruídos, abafados, chegvam da rua.
No
pátio, Dona Carmela passeava entre as crianças paralisadas pelo encanto da
campainha. Olhava fixamente o rosto de cada criança, muitas com o rosto
vermelho e suado. Algumas camisas fora das calças curtas. No silêncio, que
chegava a ser assustador, podia-se ouvir os passos arrastados da inspetora,
chinelas de couro e vestido largo estampado. Era como um general passando a
tropa em revista.
Nesse
ritual, conhecido pelas crianças como o primeiro sinal, não havia quem se
atrevesse a falar, andar, rir, movimentar-se. Tornavam-se estátuas mudas.
Tremiam só de pensar na severa autoridade da Dona Carmela que fatalmente era
posta em ação ao menor descuido, ao menor gesto de desrespeito à regra do
silêncio. Ainda que não houvesse um só movimento das crianças nessa hora, era
comum ouvir a voz sibilante da inspetora, ralhando. Parecia apenas querer dar
inequívocas demonstrações de poder e força.
E
quando havia o motivo... Alguém que desse mais um passo após o sinal. Algum
risinho que escapasse. Uma palavra... E nessa manhã qualquer do mês de outubro,
a voz de Dona Carmela ressoou no silencioso pátio:
– Você não ouviu o sinal, menino?
As
crianças tremeram. Podia ser com qualquer menino. Ninguém ousou arriscar voltar
os olhos para o fundo do pátio, de onde veio o assustador troar. Aguardaram um
ou dois intermináveis segundos, até que a pergunta retumbou novamente:
-
Você não ouviu o sinal, menino?
Zé
Emídio não teve tempo de esboçar uma reação sequer, paralisado pelo som que
reverberou em sua cabeça e pela carnuda mão de Dona Carmela que já segurava sua
orelha. O terror estampado no rosto suado e ainda mais vermelho, a camisa
desfraldada.
-
Sobe já pra Diretoria! – vociferou Dona Carmela largando a orelha de Zé Emidio,
que ardia.
Sob
os olhares das demais crianças, Zé Emidio subiu os dez metros do corredor que
separavam o pátio do outro corredor que dava acesso à sala dos professores e
também à Diretoria, os olhos mareados, uma lágrima escorrendo pelo rosto, a
orelha direita ardendo.
-
Alguém mais quer fazer companhia ao engraçadinho?
Silêncio
sepulcral. Quem se atreveria a esboçar um gesto que fosse? Embora acostumados
com a voz e o autoritarismo da inspetora, as crianças congelavam nesses
momentos. Intermináveis segundos se passaram até a voz soar novamente:
-
Quando tocar o segundo sinal, eu quero ver alguém mais na correria! Quero ver
se tem algum metido a engraçadinho que não sabe respeitar o sinal!
Tocou,
finalmente, o segundo sinal da campainha, que já não aparentava ser tão
estridente ante a impetuosidade da voz da inspetora, instantes atrás. Em
silêncio, e caminhando cuidadosamente até suas malas, as crianças foram aos
poucos formando as filas junto com os demais alunos de suas classes.
Filas
formadas, a da terceira série “A”, a primeira delas, começou a subir o corredor
em silêncio, após o comando de sua professora, Dona Alcina, rumo à sala de
aula. Ao passarem pelo cabisbaixo e choroso Zé Emídio, que permanecia de pé na
ponta do corredor por onde assomavam as professoras, as crianças lançavam um
rápido e receoso olhar. Todos sabiam o que acontecia nesse caso. As demais
filas seguiram a primeira, até que o pátio se esvaziou.
***
Começo
de ano letivo. Mário Harada sentava-se na primeira carteira dupla, na fileira
delas que ficava defronte à mesa da professora. Ao todo eram cinco fileiras de
carteiras duplas. Os alunos da classe, cerca de quarenta, sentavam-se aos
pares. A critério de Dona Alcina, seus lugares eram trocados: meninos
sentavam-se ao lado de meninos e meninas ao lado de meninas; ou então eram
formados casais para as acomodações na classe, mas esta não era a disposição
preferida de Dona Alcina.
De
maneira que a formação em vigor naquela manhã de março era a de meninos
sentando-se ao lado de meninos e meninas sentadas ao lado de meninas. Por alguma
razão, bem conhecida por Dona Alcina, mas incógnita para os alunos, os meninos
nas primeiras carteiras.
Foi
nessa manhã que pela primeira vez manifestou-se a característica mais marcante
de Mário Harada e que seria uma constante durante todo o ano. Aconteceu logo
após a chamada, feita por Dona Alcina religiosamente após todos estarem
sentados em seus lugares.
Na
ordem alfabética da chamada, Mário tinha o número vinte e três. Mas por volta
do número doze já esta entretido numa brincadeira qualquer com seu colega de
carteira, razão pela qual, ao ser chamado o número vinte e três, Mário não
respondeu.
-
Vinte e três – repetiu Dona Alcina, olhando na direção de Harada, que desatento
e indiferente cutucava o companheiro de carteira.
Dona Alcina era paciente, até o extremo às
vezes. Dificilmente se zangava. Quase nunca brigava com os alunos. Apesar de
severa, costumava amenizar o rigor do ensino da época com alguma brincadeira
com os alunos, sempre que a ocasião era propícia. Sabia impor os freios, quando
necessário, de forma a manter a classe sempre sob seu comando.
-
Abre os olhos, Harada! – brincou sorrindo a professora com o distraído
japonezinho de cabelos espetados, que continuava a cutucar seu vizinho.
Bastou
isso. A classe toda gargalhou com a piada. Harada, finalmente percebendo que
era com ele, corou, levantou a mão e respondeu a presença. Dona Alcina anotou,
sorrindo. As crianças ainda riram até um delicado “já chega” da professora.
Numa das últimas carteiras ocupadas pelos meninos, Luís não conseguia parar de
rir. Ria e repetia a frase da professora: “Abre os olhos, Harada...”
-
Luís!
Ao
tom um pouco mais ríspido da voz de Dona Alcina, Luís se calou. Mas a esta
altura o seu destino já fora traçado por Mário Harada. Com o rosto contraído
pela raiva e pela vergonha de ter sido alvo da pilhéria geral, Harada voltou-se
em direção a Luís, e num gesto característico, batendo um punho cerrado contra
a outra mão espalmada, decretou a sentença: “vou te pegar na saída”.
O
rápido incidente não teria outra repercussão qualquer, não fosse alguns dos
meninos terem percebido o gesto de Harada. Instigaram. Haveria briga na saída
das aulas. Uma diversão a mais. E assim foi. Luís foi surrado sem dó nem
piedade pelo oponente.
***
Na
semana seguinte, Harada confirmou sua valentia. Sem motivo aparente, cerrou o
punho e bateu-o contra a palma da outra mão, olhando na direção de Toninho.
Mesmo destino que Luís.Iria apanhar na saída. Mas, por quê? Ninguém ficou
sabendo. Outra briga. Outra surra aplicada sem piedade por Mário Harada.
Passou
a ser temido. O japonês era bom de briga. Tinha consciência de sua força e
estratégia. Que não se metessem com ele.
Que não ousassem desafiá-lo. Motivos para briga? Para quê? Harada entendia que
precisava manter o domínio sobre os demais meninos, iniciado naquela manhã de
março quando bateu em Luís. Precisava exercitar sua pretensa superioridade
sobre os demais.
E
assim se passaram os meses daquele ano de 1962. Dona Alcina ouviu falar pela
primeira vez das constantes brigas provocdas por Harada em agosto, quando a mãe
de uma das vítimas veio reclamar. Conversou, aconselhou, explicou, fez sermão.
Citou Zé Emidio como exemplo. Harada disse: “sim, senhora.”
Zé
Emídio por esse tempo tinha fama bem diferente. Aluno comportado, estudioso,
várias vezes laureado com a medalha de primeiro da classe, que era entregue num
cinema do Sacomã sob o patrocínio das Lojas Pirani. Consagração pública à qual
compareciam todos os alunos da escolha, e onde se assistia a um filme de cowboy
após as aplaudidas condecorações. Exemplo a ser seguido.
Harada
e Zé Emídio sentavam-se na mesma carteira em agosto, e tinham um relacionamento
até certo ponto cordial. Zé Emidio não era dado a brigas ou provocações. Tinha
também uma fama a zelar. Em setembro, foram separados, numa das muitas mudanças
de lugar promovidas por Dona Alcina. Zé numa carteira dos fundos. Harada no
outro extremo da classe. Voltaram a sentar-se no mesmo banco em outubro.
Nesse
meio tempo algumas outras brigas aconteceram, provocadas por Harada, que se
esquecera rapidamente da conversa com a professora no dia em que fora
denunciado. Chegou a bater até mesmo em algumas meninas. Maria Isabel foi uma
delas. Maria Pum, a chamavam, pois diziam que as eventuais flatulências lá no
fundo da classe eram obra da espivetada e sardenta lourinha, sempre de cabelos
lisos amarrados em forma de rabo-de-cavalo por um laço colorido. Volta e meia
estava metida nas brincadeiras e confusões dos meninos.
***
Dona
Alcina não pôde deixar de manifestar sua surpresa ao ver Zé Emídio de pé na
ponta do corredor, assustado, as lágrimas correndo pelo rosto. Perguntou: “o
que é que houve?”, mas o menino soluçou somente. A terceira série “A” já
passava pelo corredor e a professora, sem entender o que acontecia, seguiu rumo
à classe, no segundo andar, acompanhando seus alunos. Era preciso acompanhá-los
para manter a disciplina.
Quebrou
o tradicional protocolo nesse dia. Antes mesmo da chamada, pediu que todos
aguardassem um pouco, em silêncio. Saiu e caminhou de volta até a Diretoria.
Alguns minutos se passaram. Na classe, o borburinho já se avolumava quando Dona
Alcina assomou à porta, trazendo pela mão Zé Emídio, que de cabeça baixa e
ainda soluçando caminhou até seu lugar, ao lado de Harada.
- O Zé Emídio levou uma bronca da Dona Carmela porque estava distraído e não
percebeu o primeiro sinal, só isso! – avisou a professora, iniciando
imediatamente a chamada.
A
orelha de Emídio ainda ardia. Algumas meninas cochichavam no fundo da sala. Os
números de chamada era ditos em voz serena. Número 1. Presente. Número 2.
Presente... Harada cutucava Zé Emídio, que mantinha a cabeça baixa. Harada
provocava, ria-se dele. A certa altura, Zé Emídio deu uma forte cotovelada no
estômago do japonezinho. Harada puxou Emídio pelo ombro e fez o fatídico sinal.
Bastante
atormentado pelo constrangimento do castigo de há pouco, e com os olhos
lacrimosos fixos em Mário, Zé Emídio disse: “tá certo!”. Ninguém percebeu esse
pequeno e breve entrevero, exceto Maria Pum. Na hora do recreio a notícia se
espalhou entre as crianças como se alastra o fogo. Os da quarta série “B”,
única classe só de meninos em toda a escola, iniciaram apostas. A paga deveria
ser em figurinhas da Copa do Mundo, cujo bi-campeonato o Brasil conquistara em
julho.
Hora
da saída. As costumeiras mães que traziam e buscavam os filhos na escola
estavam de prontidão. Recebiam as crianças, conversavam um pouco e tomavam o
rumo de casa. Um pouco mais adiante do portão, na primeira esquina da Ouvidor
Portugal, uma rodinha alvoroçada se formava. “O Harada vai pegar o Zé Emídio”.
Alguns, incrédulos ao saberem da notícia, duvidavam que o o Zé da terceira “A”,
o das medalhas da Pirani, tinha aceito um desafio desses. Zé não era disso! E
logo com o valentão do Mário Harada, que batia em todo mundo.
Percebendo
o princípio de tumulto, o guarda Zezinho tratou de dispersar o aglomerado de
crianças. Que cada um fosse para sua casa e que deixassem de brigas. Alguém
lembrou das figurinhas da Copa do Mundo. Muitas apostas feitas. Melhor resolver
isso logo. Sugeriram o campinho, no quarteirão de cima. Longe do guarda-civil.
Foram. Subiram a Gaspar Fernandes num alvoroço. “Harada! Harada!”. Era o
favorito.
Uma
grande roda se formou na esquina. Mais de cinquenta meninos e meninas. Maria Pum
ensaiava um coro de torcida para Zé Emídio. A torcida de Harada vaiava. Os
contendores jogaram as malas para um canto. O japonês tirou a camisa. Zé
imitou. “Pega ele, pega!”
Alguns
socos trocados a esmo e logo rolavam pelo chão de terra, engalfinhados numa
luta feroz. Harada agarrou o pescoço de Zé Emídio com um braço, junto ao seu
corpo, e desferia socos. A gritaria em volta era ensurdecedora. Isolada em sua
torcida, Maria Pum pedia a reação de Zé Emídio. Apostara dez figurinhas da
Seleção Brasileira nele, incluindo as de Pelé e Zagalo. Não poderia perder. E
tinha também a coisa da desforra da surra recente que tomara de Harada.
Não
se vislumbrava um vencedor, bom tempo depois de iniciada a briga. Zé Emídio
continuava na mesma posição, o pescoço preso pelo braço de Harada, recebendo
socos na cabeça. Algumas mães, que subiam a rua com seus filhos, acudiram.
Tentaram separar. Zé Emídio mordia a barriga de Harada. Pediram ajuda. Veio o
guarda Zezinho, correndo rua acima.
Separaram
os dois, finalmente. Zé Emídio bateu com a mão a poeira das calças curtas, que
pouco mostravam do azul, tão sujas de terra. Vestiu a camisa, colocou a mala de
material a tira-colo, olhou em volta. A plateia silenciosa afastou-se, dando
passagem ao lutador, que seguiu o rumo de sua casa.
Harada
tinha a marca roxa dos dentes em sua barriga. Um pequeno filete de sangue.
Escoltado por Zezinho e por duas mães aflitas que ajudaram a separar a briga,
foi levado de volta à escola. Dona Carmela limpou alguns arranhões com algodão
e água oxigenada. Passou mercúrio cromo no ferimento da barriga. Mário chorou.
As
mães dos briguentos foram chamadas no dia seguinte, para tomarem ciência da
suspensão imposta aos dois. Pelo que se soube, as apostas não foram pagas,
muito embora Maria Pum tivesse obtido na marras as dez figurinhas que apostara
com um menino da quarta “B”. Harada ainda fez o gesto característico de briga
mais algumas vezes, para um ou outro menino. Nenhuma ameaça mais se consumou.
Zé Emídio foi ao cinema do Sacomã, na festa da Pirani, mais duas vezes naquele
ano. Recebeu a medalha de honra ao mérito de final de ano, pelo desempenho
durante todo o período. Quase todos passaram de ano, incluindo-se Zé Emídio,
Mário Harada, Maria Pum e Toninho. Só três meninos e uma menina foram
reprovados.
Muitas
outras coisas ocorreram naquele distante ano de 1962. Lembrei-me desta
história. Se apanhei de Harada? E por acaso eu também não era da terceira série
“A”?
_______________________________________________________
Publicado no livro "Contos & Encontros"
Legnar Editora - São Paulo - 1998
______________________________________________________________
Legnar Editora - São Paulo - 1998
______________________________________________________________
Nenhum comentário:
Postar um comentário