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30.11.18

A haste quebrada














Quero narrar este fato como um dever de ofício. Não há outra razão, senão a obrigação a que a consciência nos remete em certos momentos. E que fique claro que não haveria necessidade de eu estar aqui contando este caso, não fosse um tantinho de nostalgia que me bateu noutro dia, ao tentar escrever uma crônica na minha velha e saudosa "máquina de escrever", a que foi adquirida antes de qualquer outra modernice de hoje em dia. Então raciocinei: nada de informática! Nada das facilidades da Microsoft! Nada das comodidades oferecidas hoje em dia. Nada de Bill Gates e seus seguidores.

Muito bem! Retirada a tênue terra seca de cima da velha máquina de escrever, decidi levar adiante o meu saudosismo, e escrever estas linhas. Na mesma máquina que causou a história que lhes conto! Consigo lembrar quantidade ínfima dos fatos, mas mesmo assim tentarei dar uma idéia do que significou em minha vida uma haste quebrada. Que haste? - questionarão todos com razão. E eu lhes digo: a haste de sustentação de uma certa letra de minha velha e saudosa máquina de escrever. Uma consoante, diga-se! Fosse uma vogal, e esta narrativa sequer existiria. Inimaginável conceber estas linhas sem qualquer das vogais. Mas, voltemos à história! Essa tal haste se quebrou um dia, e a tal consoante que essa milagrosa haste sustentava sumiu, sem que eu me desse conta do fato... E é esse fato insignificante sobre a consoante sumida que lhes narro agora.

Foi assim: Eu era um ‘foca’ de um certo jornalzinho desconhecido de qualquer bairro desta cidade, nos idos de 1978. O nome do jornal eu vou omitir, justamente em razão da falta daquela mesma consoante de que falei, e já que a máquina em que agora escrevo é a mesma, até hoje não consertada. Muito bem!  Foca, é bom que saibam os senhores, é o iniciante no jornalismo, aquele que tem que encarar qualquer trabalho com o objetivo de obter conhecimento no ofício que almeja exercer. Eu era um deles, naquele ano de 1978, na busca de meu canudo de curso universitário. E assim, eu era obrigado a concretizar qualquer ideia maluca do editor do tal jornalzinho, escrevendo sobre o que ele imaginasse.

Só que eu fui um foca de muita sorte, e só agora eu entendo o significado disso em minha vida. E mais: a mesma sorte seguiu minha tênue carreira, de maneira que, em razão disso,  eu nunca necessitei suar tanto a camisa como acontece a qualquer outro foca ou mesmo a alguns veteranos. E, dessa forma, graças a essa sorte teimosa, eu acabei ganhando uma coluna semanal de crônicas no tal jornalzinho desconhecido, o que me levava a crer numa vida muito cômoda e tranquila, uma vez que não necessitaria sair atrás da notícia. Bastaria utilizar um tanto de criatividade e outro tanto de correção gramatical e tudo estaria resolvido.

Ledo engano, entretanto! Foi só quando conquistei essa invejável colocação de cronista, almejada até entre os mais veteranos no jornalismo, que eu me dei conta da quebra irremediável da haste daquela bendita letra na minha máquina de escrever. Uma mísera haste, de uma mísera letra! Uma insignificante consoante! Uma só entre tantas outras que integram o alfabeto e o teclado de minha “vermelhinha”, que era como eu chamava, carinhosamente,  a minha velha máquina de escrever, objeto de tantos sonhos de estudante. E a falta desta haste, acabou me custando caro, confesso!

O motivo é singelo, entendo, hoje que sou dono de tecnologia mais avantajada, sem omissão de vogal ou consoante. Naqueles dias, dinheiro eu não tinha que consertasse a haste! Estudante, sabem todos os que estudaram, vive de lanche, dinheiro curto e ônibus lotado! Consertar a tal haste eu não saberia, e nem teria condições de fazê-lo, já que além da haste estar quebrada, a letra estava sumida. Então? Que fazer? Como sustentar a confortável colocação de cronista já conquistada, num mero acaso da insistente sorte, sem a tal letra?

Claro! A solução se me afigurou tão clara como a luz do sol! Já que não era necessário atender nenhuma determinação do editor quanto ao que escrever, já que tudo sairia de minha cabeça, uma vez que crônica é crônica, e já que minha obrigação era entregar um texto semanal que recheasse a coluna a mim reservada no jornal,  eu solucionaria a questão escrevendo somente artigos sem o uso da tal letra que faltava na minha máquina. Adeus, inútil consoante!

Genial! Estava resolvido! Nada de termos com aquela tal letrinha. Nada de florear e inventar, senão o risco de necessitar da tal letra da haste quebrada seria uma ameaça. Somente o trivial bastaria, e garantiria o que já havia sido conquistado: um lugar ao sol como cronista! E assim foi na edição seguinte, e na outra, e na outra, até que um dia o editor ligou lá em casa: “Escuta aqui, ô foca! Já encheu o saco a sua crônica, sabia? Não tem nada que interesse! Tanta coisa acontecendo em Brasília, e você me escreve sobre amenidades? Cadê aquela “fleuma” do jornalista? Cadê a novidade? Cadê o fato do momento? Tem tanta coisa acontecendo, e você fica aí com essa lenga-lenga, com essa água com açúcar? Mais um texto e eu me defino: ou fica ou sai!”

Engoli um nó formado em minha garganta, com muito custo. Quando desliguei o telefone, senti não ter dado ao editor uma justificativa adequada, mas enfim, já tinha desligado! Já que eu iria deixar de lado o status conseguido até então, decidi colocar um fim honroso à minha breve carreira como cronista. Não entraria em detalhes, já que coisa íntima deve-se guardar somente na intimidade, e se agora lhes conto estes fatos é somente um gesto de confidência, uma iniciativa minha.

E assim, só me resta lhes contar que encerrei minha curta carreira de cronista com um texto breve, que jamais foi divulgado naquela jornalzinho de bairro no qual a iniciei. O editor certamente o leu, mas nunca manifestou seu juízo sobre o que leu. E hoje, raciocinando melhor, confesso dar razão ao editor. Como falar do Congresso, da Assembleia e da Câmara, sem a tal consoante? Quase todos os que ali flutuam levam a tal letra no nome, ou senão no cargo, ou então na fama, qualquer que seja a razão...

Foi só então que, entre indignado e frustrado em minha iniciativa de continuar batalhando e escrevendo com uma máquina onde faltava só uma letra, enviei ao editor o que escrevi naquela minha coxa maquininha vermelha:

“Sr. Editor: Esqueça Brasília! Esqueça a “fleuma” do jornalista! Esqueça a novidade! Esqueça o Congresso! Esqueça esses tais lá do momento! Me esqueça, isto sim! Quer saber o que acontece comigo? Ai, ai, ai, senhor editor! O que acontece comigo é que eu  “_ erdí”  a letra  “_ ê”  da minha máquina de escrever, “_ôrra” !

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Publicado na coletânea "Por que comigo" - Editora PerSe - 2018
Projeto Apparere





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