Prólogo
No
começo, quando pensei em escrever esta história, os personagens eram só dois:
Maria e José. Nada original, a considerar os dois mil e dois anos desde que um
casal com o mesmo nome protagonizou a maior história de toda a história. Só que
eram os nomes que eu queria, e assim ficou. Portanto, peço licença a todas as
Marias e a todos os Josés do mundo para usar o seu nome na minha história.
I
E
assim, já que tudo fica mais ou menos esclarecido, Maria e José haviam se
casado não fazia nem um mês. Quem é que pode com a vida de recém-casado? Maria
tinha roupa extra pra lavar todo santo dia. José ainda não estava acostumado
com o arroz que grudava no fundo da panela, muito diferente do que aquele que
sua mãe fazia. Maria punha ordem na casa lá de sua maneira, coisa que nem
sempre agradava José. José foi despedido. Maria engravidou.
II
Maria
foi internada. SUS. José não estava por perto quando chegaram os gêmeos, numa
inesperada tarde de outubro, mês e meio antes do tempo. Maria suportou as dores
e correu risco de vida. José correu risco de vida ao atravessar a marginal,
saindo de uma entrevista de emprego que não deu em nada. Três dias depois
estavam diante da cama de casal, num recanto qualquer da cidade, onde Ricardo e
Rodrigo dormiam. Eles sorriam, mas era preciso um berço que não havia. E um
emprego para José, que não havia, e fraldas, e dignidade de uma casa para
Ricardo e Rodrigo. E para Maria e José. Mas isso não havia.
III
José
foi admitido como porteiro de um prédio. Maria como doméstica. Pela graça de
Deus e solidariedade dos homens, Ricardo e Rodrigo freqüentavam o primeiro grau
numa escola pública. Maria foi despedida e virou diarista. José subiu de cargo
e virou zelador. E os dois, comemoraram juntos e também beberam, quase como na
música. Bebiam sempre mais do que o necessário para comemorar. Maria limpava
cada casa que dava até medo. José fazia cada coisa como zelador... José e Maria
quase nem se encontravam. José passou a ser vigilante da noite. Maria quase nem
sabia em que casa deveria estar.
IV
Ricardo
foi atropelado perto da escola. Rodrigo não se interessava mais pela escola.
José era procurado por muito grã-fino diante do prédio. Maria perdeu duas
diárias. Depois perdeu mais outra, tudo culpa de maridos desempregados. No aniversário
de Vânia, irmã de Maria, Maria e José se encontraram e puderam dizer que assim
não dá mais. Ricardo já estava bom, mas Rodrigo em má companhia. José disse que
a culpa era de Maria. Maria se indignou. Então José foi morar no reservado dos
funcionários do edifício. Maria ficou cuidando dos dois, Rodrigo e Ricardo,
cada qual mais malcriado que o outro.
V
Maria
quase não tinha mais diária para fazer. José não dava um tostão. Ricardo foi
preso com entorpecentes. Rodrigo nunca mais foi à escola. Aí, o José, que só
fazia receber grã-fino na porta do prédio, também foi preso. Tráfico. Maria
quase endoidou, mas conseguiu mais duas casas pra fazer na semana, e ia
levando. Mas foi nesse tempo que Ricardo foi encontrado morto. Maria quase
morreu também. Agora era só Maria do lado de fora, na vida. E já sabia o que
fazer.
VI
Maria
foi vista pela última vez, saindo de um salão de beleza. Tinha os cabelos
pintados de outra cor, as unhas feitas. Nos olhos um brilho diferente. Era só
uma Maria. Já sabia o que fazer.
Epílogo
Qualquer
dia desses eu escrevo outra história, que nem realidade é, para a Maria e para
o José deste folhetim. Agora não, pois estou cansado e não saberia dar final
melhor para os dois, a não ser que me aparecesse um desses lampejos, quem sabe...
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Publicado na "Antologia Paulista - vol.4" - Rumo Editorial-SP (2003)
Publicado em "O Encantador de Passarinhos e outras histórias" - Rumo Editorial-SP (2011)
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