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12.4.17

Um folhetim


Prólogo
No começo, quando pensei em escrever esta história, os personagens eram só dois: Maria e José. Nada original, a considerar os dois mil e dois anos desde que um casal com o mesmo nome protagonizou a maior história de toda a história. Só que eram os nomes que eu queria, e assim ficou. Portanto, peço licença a todas as Marias e a todos os Josés do mundo para usar o seu nome na minha história.

I
E assim, já que tudo fica mais ou menos esclarecido, Maria e José haviam se casado não fazia nem um mês. Quem é que pode com a vida de recém-casado? Maria tinha roupa extra pra lavar todo santo dia. José ainda não estava acostumado com o arroz que grudava no fundo da panela, muito diferente do que aquele que sua mãe fazia. Maria punha ordem na casa lá de sua maneira, coisa que nem sempre agradava José. José foi despedido. Maria engravidou.

II
Maria foi internada. SUS. José não estava por perto quando chegaram os gêmeos, numa inesperada tarde de outubro, mês e meio antes do tempo. Maria suportou as dores e correu risco de vida. José correu risco de vida ao atravessar a marginal, saindo de uma entrevista de emprego que não deu em nada. Três dias depois estavam diante da cama de casal, num recanto qualquer da cidade, onde Ricardo e Rodrigo dormiam. Eles sorriam, mas era preciso um berço que não havia. E um emprego para José, que não havia, e fraldas, e dignidade de uma casa para Ricardo e Rodrigo. E para Maria e José. Mas isso não havia.

III
José foi admitido como porteiro de um prédio. Maria como doméstica. Pela graça de Deus e solidariedade dos homens, Ricardo e Rodrigo freqüentavam o primeiro grau numa escola pública. Maria foi despedida e virou diarista. José subiu de cargo e virou zelador. E os dois, comemoraram juntos e também beberam, quase como na música. Bebiam sempre mais do que o necessário para comemorar. Maria limpava cada casa que dava até medo. José fazia cada coisa como zelador... José e Maria quase nem se encontravam. José passou a ser vigilante da noite. Maria quase nem sabia em que casa deveria estar.

IV
Ricardo foi atropelado perto da escola. Rodrigo não se interessava mais pela escola. José era procurado por muito grã-fino diante do prédio. Maria perdeu duas diárias. Depois perdeu mais outra, tudo culpa de maridos desempregados. No aniversário de Vânia, irmã de Maria, Maria e José se encontraram e puderam dizer que assim não dá mais. Ricardo já estava bom, mas Rodrigo em má companhia. José disse que a culpa era de Maria. Maria se indignou. Então José foi morar no reservado dos funcionários do edifício. Maria ficou cuidando dos dois, Rodrigo e Ricardo, cada qual mais malcriado que o outro.

V
Maria quase não tinha mais diária para fazer. José não dava um tostão. Ricardo foi preso com entorpecentes. Rodrigo nunca mais foi à escola. Aí, o José, que só fazia receber grã-fino na porta do prédio, também foi preso. Tráfico. Maria quase endoidou, mas conseguiu mais duas casas pra fazer na semana, e ia levando. Mas foi nesse tempo que Ricardo foi encontrado morto. Maria quase morreu também. Agora era só Maria do lado de fora, na vida. E já sabia o que fazer.


VI 
Maria foi vista pela última vez, saindo de um salão de beleza. Tinha os cabelos pintados de outra cor, as unhas feitas. Nos olhos um brilho diferente. Era só uma Maria. Já sabia o que fazer.


Epílogo
Qualquer dia desses eu escrevo outra história, que nem realidade é, para a Maria e para o José deste folhetim. Agora não, pois estou cansado e não saberia dar final melhor para os dois, a não ser que me aparecesse um desses lampejos, quem sabe... 
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Publicado na "Antologia Paulista - vol.4" - Rumo Editorial-SP (2003)
Publicado em "O Encantador de Passarinhos e outras histórias" - Rumo Editorial-SP (2011)

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