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19.12.17

Meus novos olhos



Hoje fui buscar meus óculos, encomendados segundo a indicação de um profissional da medicina que me lembro ter visitado apenas cinco vezes em toda minha vida. A primeira foi num longínquo dia de exame obrigatório nos meus tempos de curso primário. Depois, em três renovações da carteira de habilitação de motorista, e na quinta-feira passada, pela primeira vez, por iniciativa própria.

Como eu não conseguia ver direito as placas indicativas do Túnel Ayrton Senna, por onde passo todo fim de tarde, fui lá testar minha acuidade visual. E deu no que deu. Meu olho direito tem uma deficiência de 0,75 para longe, e existe um pequeno problema no esquerdo quando precisa ver de perto. Ou algo parecido com isso, sei lá. Na verdade, nunca me preocupei muito com essas questões oculares, pois sempre tive a tal visão de lince, até dois meses atrás. Nem me preocupei com as minhas prováveis deficiências visuais, nem com as dos outros, até quinta-feira passada e por isso não posso ficar dando detalhes mais precisos acerca de graus. Também não entendo nada de miopia, hipermetropia ou astigmatismo, ou seja lá aquilo que for que eu agora tenho.

Mas, como eu dizia, fui buscar meus óculos, em decorrência disso tudo. Confesso que estava ansioso pelo momento, e até saí mais cedo do trabalho, com medo de chegar na ótica e encontrar as portas fechadas.  Cheguei em tempo, felizmente, e fui recebido com cumprimentos e balas pela simpática dona do estabelecimento, que até me chamou pelo nome. Não há nada mais normal do que alguém te chamar pelo nome. Um pouco menos normal é te oferecerem balas, suco de laranja e cafezinho. Muito menos normal, descobri depois, é a tática desses simpáticos donos de óticas.

Fui logo convidado a sentar-me em cômoda cadeira, diante de um espelho circular. Normal, entendi. Dona Irene, a que me vendeu a armação cinco dias antes, me informou: como é a primeira vez que você usa óculos, ele vai ter que te dar algumas instruções. "Ele", era o outro simpático especialista que, desde que fui lá pela primeira vez, me atendeu com grande cortesia. Comecei a ficar preocupado. Afinal, óculos não é apenas uma simples armação com lentes de vidro que se coloca sobre o nariz e que fica entre nossos olhos e o mundo? Pra que então as instruções?

Estava para começar o rosário de recomendações que eu nunca imaginei poderem existir, pelo simples fato de ter que usar óculos. O meu, pra que fique mais claro, deveria ter lentes multifocais, que em resumo é uma dessas inovações introduzidas pela tecnologia, para eliminar o incômodo causado pelas antigas e superadas  bi-focais. Aquelas que salientam tuas olheiras para o resto da população, pois trazem bem visíveis as dificuldades do usuário em ver de longe e de perto ao mesmo tempo, através de um semi-círculo na parte inferior das lentes.

As indispensáveis recomendações do especialista para quem usa óculos pela primeira vez me assombraram. Especialmente se forem com lentes do tipo multifocais, pois estas exigem uma série de exercícios muito complexa e um aprendizado bem amplo, fiquei sabendo. Descobri, logo na primeira recomendação, que as tais lentes multifocais têm uma certa zona, à direita e à esquerda, e abaixo da linha do horizonte, que não servem absolutamente para nada. São zonas neutras. Através dessa zona nebulosa não conseguirei ver nada, além de borrões distorcidos. Soube então qual  a razão da tática de oferecer balas, sucos e cafezinho. Os donos de ótica deveriam conceder um desconto de pelo menos uns trinta por cento no preço dos óculos, em virtude dessa inútil zona neutra das lentes. Ao invés disso, oferecem balas. Desfeito o mistério.

O principal alerta quanto a isso, frisou bem o especialista, é que você não vai mais poder apenas virar os olhos para olhar para os lados. Vai ter que virar a cabeça, pois assim seus olhos não são submetidos à brusca deformação que a área neutra proporciona. Virando a cabeça, ao invés dos olhos, o seu cérebro assimila logo o foco do objeto que você pretende ver. Gente! Vocês já pensaram na consequência desse alerta? Como é que eu vou conseguir olhar , digamos, com o rabo do olho, para aquela dona bem formada de corpo e feição, que passa ao meu lado? Seja pela direita ou pela esquerda, o problema será o mesmo. Como  disfarçar a olhadela indefectível para o "mulherão" que passa ao lado? Me danei! Ou entorto o pescoço, ou então todas as bundas que passarem por mim ficarão definitivamente desfocadas pela tal zona neutra da minha lente. Lamentável!

Mas não era só isso. Disse-me o simpático especialista, que oferece balas e sucos durante a visita à loja, que eu deveria me habituar com o novo jeito de subir e descer escadas. Epa! Fiquei extremamente preocupado quando ele tocou nesse assunto. Escada é escada, em qualquer lugar do mundo, tanto para quem usa óculos quanto para quem não usa. Esse cara tá valorizando os óculos que me vendeu, pensei. Mas, como marinheiro de primeira viagem utilizando as tais lentes multifocais de última geração, ouvi a explicação, tintim por tintim.

Em resumo, agora devo fazer muitas coisas que não fazia antes quando subia ou descia uma escada. Olhar para o primeiro degrau, baixando a cabeça, e não os olhos, calcular uma bissetriz entre o corrimão  e a altura de cada degrau. Colocar primeiro o pé direito, que é pra dar sorte. Erguer a cabeça, e não só os olhos. Lembrar quantos degraus existem até o topo ou o chão, e pronto... Conseguirei subir ou descer qualquer escada usando óculos com lentes multifocais. Até as rolantes, me garantiu!

Outro ponto que me chamou atenção naquela preliminar do especialista foi quanto à direção de veículos automotores. Acho que vou ter que me inscrever numa auto-escola e começar tudo de novo, pois as coisas mudam radicalmente quando se passa a ser portador de óculos com lentes multifocais. Descobri que não devo olhar para os retrovisores externos, seja do motorista, na esquerda, ou do passageiro, na direita. Também vai ficar tudo fora de foco, como quando se olha para as bundas com o rabo de olho, através da tal zona neutra. Já pensou? Eu, que sempre fui bom em fazer manobras para estacionamento, aquelas tais balizas dos exames de motorista! Como eu vou me virar, não sei.

Pra encurtar a conversa, depois de cerca de meia hora de conselhos e recomendações para usuários da primeira multifocal, dentre estes o de comer pipocas vendo televisão, o gentil e simpático especialista da ótica me deu importantes dicas de como lavar e conservar meus óculos com as discriminatórias lentes multifocais. Sabãozinho e água aqui, lenço de papel ali, até que finalmente ele me aconselhou a já sair da loja com o tal óculos, "pra ir treinando".  Agradeci, ganhei mais algumas  balas, uma flanelinha pra limpar as lentes com muito cuidado e um estojo de feliz novo proprietário de um óculos com lentes multifocais.

E lá fui eu, óculos sobre o nariz, em direção ao meu carro. Logo de cara fui  tropeçando no primeiro degrau da saída da loja, e quase cai. A impressão que eu tive era a de estar dentro de um daqueles aquários redondos. Cheguei relativamente bem até o meu carro, mas só acertei o buraco da fechadura na terceira tentativa. Dei a partida, e antes de sair, fui conferir o alerta sobre os retrovisores laterais. Santo Deus! Era verdade!

Sei dizer que demorei um tempão pra chegar em casa, pois não passei dos quarenta quilômetros por hora. Estava assustado demais com mudanças tão radicais e repentinas. Custei a achar a fechadura da porta de meu apartamento. Custei a localizar e tatear minha mulher antes de lhe dar o beijo de boa noite. "Ah, agora sim! Você está parecendo um intelectual", me disse ela. Creio que vou ter que conviver por algum tempo com esse tipo de coisas. Paciência!     

__________________
Publicado no livro "Para bem existir - e outros escritos guardados no tempo"
ISBN 978-85-60380-52-7
Rumo Editorial - SP - 2017

Um comentário:

ljorge disse...

Gosto do modo de narração do episódio...da construção do tema, que pode ter acontecido, como pode nunca ter ocorrido...mas que ficou muito bonito, ficou!

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