Encontre o que quer ver

18.4.20

Limbo nos telhados



O primeiro deles que se deixou ver apareceu durante o dia, numa das raras manhãs sem chuva. Entrou pelo portão da praia, sob os olhares de todos que já estavam despertos.  Não tinha a aparência assustadora, como se imaginava e, portanto, sua chegada não causou nenhum alvoroço. Era pequeno, menor ainda do que o supunham. Roupas muito sujas, confundindo-se com a própria sujeira das pernas e das mãos finas que trazia à mostra. Caminhou com passos rápidos entre as pessoas que se esquivavam. Contrastando com toda sua fisionomia, tinha nos olhos um brilho vivo e sagaz. Talvez, por isso, ninguém ousou permitir que seus olhares se cruzassem. Baixavam o rosto à sua passagem ligeira e indiferente a tudo e a todos.

Embora não causasse pânico ou qualquer outra atitude mais evidente, a presença daquela criança andrajosa provocou uma palpável sensação de incômodo. Não o enxotaram e tampouco lhe dirigiram a palavra. No entanto, esquivaram-se dela como se lhes causasse asco ou repulsa. Ninguém trocou sequer uma palavra a respeito daquela inusitada aparição, mas todos sabiam que o pequeno, sujo e maltrapilho, lançara seu olhar faiscante na direção de cada porta aberta e de cada um que cruzou seu caminho em sua rápida passagem pelo casario. Alguns viram também quando um cão afastou-se ganindo, enquanto o pequeno transpunha o portão que conduzia às montanhas, mastigando alguma coisa. Durante todo o resto daquele dia, as pessoas olharam com apreensão para o portão da praia e para todos que por ali passaram. Até mesmo para as crianças do lugar.

Quando aquele dia acabou, trazendo consigo a escuridão encharcada pela chuva que voltou a cair, um silêncio cúmplice tomou conta da noite. Até mesmo os sons costumeiros pareciam mais abafados, ainda que sempre o tivessem sido pela invariável e monótona sinfonia da chuva sobre os telhados. Houve uma nítida impressão que os talheres se tocaram menos em cada mesa e que as vozes se fizeram sussurradas. As pessoas se recolheram mais cedo e as portas se fecharam antes. Essa foi a maior evidência de que alguma coisa parecia preencher o ar espesso e carregado, denotando que algo havia mudado naquele lugar. Seria apenas mais uma noite como outras tantas, não fosse ter aparecido por ali aquele menino andrajoso.

E foi uma noite interminável. Parecia que a chuva era muito mais intensa do que em qualquer outra noite. Ou talvez chovesse como de costume, mas os sons da água batendo nos telhados estivessem mais audíveis, acentuados pela insônia que se apoderou de cada um, em cada quarto, sob cada teto. Olhos e ouvidos permaneceram em atenta vigília, embora a noite se deixasse escorrer na mesmice da chuva que parecia nunca mais terminar.  E que de fato não parou quando o dia amanheceu. E foi somente depois dessa longa noite em que cada mente catalisou para si a ameaça travestida de andrajos, que de fato algo mudou.

Até então não sabiam que uma silenciosa mudança já havia começado muito antes daquela primeira aparição. Cada um daqueles homens e mulheres conviveu por muito mais tempo com a perspectiva de mudanças, sem jamais se dar conta de que elas já vinham acontecendo lentamente, como o musgo que dia-a-dia cobria seus telhados. Foi preciso que o primeiro menino maltrapilho de olhos faiscantes aparecesse, em plena luz do dia, para que começassem a trancar as portas mais cedo e, com ela, os seus próprios medos.

Então puseram-se num estado letárgico e impotente de espera. Uma angustiante espera por algo que lhes aconteceria, que não poderiam supor o que fosse e em que momento aconteceria. A hora da mudança definitiva se lhes afigurou clara e insofismável, personificada naquele menino franzino, sujo e de olhos que lhes perscrutava. a alma.

*

Os primeiros a mencionar que provavelmente deixariam o lugar foram os donos das maiores e mais bonitas casas de veraneio. Foram os que mais sentiram ameaçada a sua pretensa hegemonia. Tão logo se instalaram por ali alguns outros veranistas e ergueram suas casas mais simples, já se podia notar que a ostentação hipócrita passou a dar lugar a um desdém mal-dissimulado por sorrisos forçados e distribuídos com certa parcimônia. Estes foram os primeiros a supor que sua integridade estava ameaçada pela aparente deterioração que se insinuava pela presença dos novos vizinhos menos abastados. E postaram-se em defensiva.

Aos poucos se deixavam fazer íntimos e por vezes afáveis, como se dessem a seus inoportunos novos vizinhos a corda para a própria forca. A cada gesto amistoso que procuravam demonstrar, faziam evidenciar que havia uma distância a ser guardada pelo invisível, mas palpável, muro da hipócrita ostentação que a cada dia acentuavam. Certamente isso tudo era muito bem compreendido pelas partes, uma vez que guardavam prudente distância uma da outra. Cada qual cavando sua trincheira. 

O tempo, em sua sábia trajetória, fez com que as camadas desse limbo fossem se assentando sobre os telhados de cada um, indiferentes. Menos diferença fez o limbo sobre as casas mais simples, pois estas já tinham visto chuva e umidade suficientes para saber conviver com eles. E, ainda assim, sentiam-se sufocar pelo acre bolor que exalava cada vez com mais profusão daquelas casas. E não estranharam quando os primeiros se foram, deixando para trás o mofo em suas paredes e pegadas fundas nas poças de lama do caminho até o portão que saía para as montanhas.  Isso aconteceu logo após as primeiras noites de chuva intensa, quando os pequenos começaram a fazer suas invisíveis incursões noturnas pelas vielas escuras.

*

Nos últimos tempos, a vigilância parecia mais ostensiva e os intervalos entre as rondas haviam diminuído sensivelmente. A cada pouco podia-se perceber um pequeno vulto cinzento esgueirando-se rápido e dissimulado pelas vielas escuras, desaparecendo a seguir nas sombras dos becos entre uma casa e outra. Algumas frestas das janelas do casario deixavam escapar fiapos de luz que se projetavam nas poças de lama. Quando não havia chuva, o silêncio só era quebrado pelo distante e abafado som dos animais noturnos e por ruídos próprios da escuridão. Mas a presença deles era pressentida à menor oscilação do vento, como se sua própria respiração os revelasse entre a folhagem dos arbustos. Ou então pelo ruído mais audível de pés que pisavam os charcos. Eram os pés deles, com certeza.

Tanto o portão das montanhas quanto o da praia eram trancados assim que a noite chegava. Embora não pudessem vê-los, sabiam que ali os pequenos concentravam sua vigilância e por isso ninguém mais ousava transpor os portões depois que escurecia. Temiam um ataque, apesar de saberem que isso nunca ocorrera antes e de acalentarem a íntima esperança de que isso não viria ocorrer. Nem mesmo quando da última fuga isso aconteceu. Naquela vez, a noite encheu-se de uivos lancinantes e os pequenos vultos cinzentos e sorrateiros cruzaram os becos incontáveis vezes. Ninguém ousou manter luzes acesas, mas sabia-se que em cada fresta das janelas havia olhos medrosos tentando vislumbrar qualquer vulto na escuridão. Depois, quando as primeiras luzes silenciaram de vez a agonia dos pequenos, soube-se que estes não haviam impedido a fuga. Talvez porque o único a escapar fosse velho e bêbado e o achassem inútil.

As aparições passaram a ser cada vez mais frequentes e numerosas. A cada manhã sem chuva surgiam de ambos os portões, incontáveis pequenos vultos cinzentos e maltrapilhos, tão sujos quanto as poças de lama que se acumulavam nos caminhos e nos becos. Eram extremamente silenciosos no seu vagar pelas vielas entre as casas. Aguçavam seus olhos faiscantes em todas as portas abertas e em cada rosto. Embora quietos, os maltrapilhos passaram a demonstrar um pouco mais de audácia e já não roubavam alimentos somente dos cães. Insinuavam-se por uma porta e fixavam o olhar em quem quer que estivesse dentro da casa. E assim ficavam, olhando e aguardando, olhando fixamente e aguardando interminávelmente, até que lhes atirasse um pedaço de pão.

Algumas casas haviam sido abandonadas por seus donos e permaneciam de portas fechadas, esverdeando-se a cada noite. Contudo não eram muitas as casas fechadas, pois com o passar das manhãs sem chuva, ficou muito mais difícil deixar o lugar. Julgavam que os portões estivessem vigiados pelos pequenos e não tinham mais coragem para sair, exceto durante o dia, para comprar mantimentos. Nessas incursões eram seguidos por inúmeros olhos faiscantes que os acompanhavam até adentrarem o portão novamente. Assim mesmo alguns fugiam quando a noite caía e supunham que os portões abertos não estivessem sendo vigiados. Mas nos últimos tempos os portões passaram a ser trancados, tão logo a noite caía.

Os que não tinham reunido coragem para tentar fugir, também não ousavam fechar suas portas durante o dia. Permaneciam dentro de suas casas, esperando que um rosto pequeno e de olhos luminosos assomasse e ficasse à espera do pão. As crianças do local eram os únicos a não sentir medo dos pequenos cinzentos e até se atreviam a caminhar com eles pelas poças d’água que nunca secavam. Nos primeiros dias foram repreendidos, mas depois tiveram muda aprovação para circularem à vontade junto à horda crescente de cinzentos maltrapilhos.  E já não era mais somente nas manhãs sem chuva que eles apareciam. Bandos silenciosos, como espectros esquálidos, chapinhavam o lamaçal das vielas mesmo quando a água da chuva insistia em murmurejar nos telhados cada vez mais verdes, em intermináveis e monótonos concertos.

Assim definhavam os homens e mulheres daquele lugar, presos em suas próprias casas com odor insuportável do mofo dos dias de chuva, visitados pelo cinzento silêncio dos meninos de uma só cor, todos fundidos à lama, todos da mesma cor que a chuva não conseguia alterar, todos com os mesmos olhos de pedir e perscrutar suas almas. Assim começaram a sucumbir os mais fracos, que deixaram de sair pelo portão das montanhas para buscar o pão vigiado, ou que por ele deixaram de escapar. Assim foram morrendo afogados pela lama de suas vielas ou pelo mar que abraçava a fuga impossível. Assim foram ficando mais verdes seus telhados.

Até que numa manhã, a segunda consecutiva em que o sol insistia inutilmente em secar as poças daquele lugar, nenhum menino apareceu. O portão da praia encontrava-se escancarado, talvez há muito tempo. O portão das montanhas entreaberto. Por nenhum deles entrou sequer um menino maltrapilho e eternamente calado naquela manhã. As poças, já menos numerosas, não foram pisoteadas pela horda de pequenos pés magros e descalços. Nenhum rosto sujo assomou em qualquer porta a olhar e esperar. Nenhum pequeno corpo cinzento e maltrapilho se esgueirou pelos becos e pelas vielas.

Pouco a pouco, cada janela foi se abrindo e deixando à mostra um rosto de olhar incrédulo. Logo os moradores foram deixando suas casas, caminhando receosos e cambaleantes como zumbis. Ao se darem conta daquele inesperado vazio de vultos cinzentos, incontinente, correram, pisoteando a lama com passadas trôpegas. Ganharam o portão. Embrenharam-se rumo à montanha, deixando para trás a vila vazia, com suas casas esverdeadas e seus telhados cheios de limbo. Não ousaram olhar para os lados, pois sabiam que em cada moita haveria um par de olhos faiscantes à espreita.

*** 
Publicado no livro "O Encantador de Passarinhos - e outras histórias"
Clube de Autores - São Paulo - 2011






Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...