Foi assim: o seu Olegário, pai da Cininha, só começou a achar realmente que ela estava grávida quando o boato já não era novidade para mais ninguém no condomínio! Dona Tavinha, a do 21, dita e havida como a leva e traz mais eficiente de todo o edifício e arredores já tinha falado o diabo sobre a barriga e o feitio do corpo da Cininha. “De menina moça é que ela não tem mais nada, isso sim...” – assegurava dona Tavinha.
Cininha é que não se entregava de jeito
nenhum, tadinha! Tudo que sabia fazer era ser de seu jeito de todo dia: chegava
da escola, beijava o pai, a mãe, o irmão mais velho, a irmã mais nova e até a
empregada, naquele seu "oi-oi-oi-oi" bem alegre, próprio da
jovialidade adolescente que não tem nada a dever para o mundo e está feliz e em
paz com ele.
E assim a coisa andava, até que naquele
sábado Cininha vomitou logo pela manhã. Seu Olegário achou que fosse
consequência do que a menina tinha comido na noite anterior. Já pensou o tanto de
macarrão com atum e molho de tomate que aquela menina comeu? Onde já se viu
tamanho despropósito? E mais: além do macarrão com atum, haviam pedido duas pizzas,
uma de quatro queijos e outra portuguesa. Foi daí o mal-estar, com certeza!
Porém, quando a notícia do vomitório de
Cininha chegou aos ouvidos de dona Tavinha, a do 21... Ah, foi um deus nos
acuda! Só faltou ela sair dizendo o sexo da criança! Começou a ligar para todos os apartamentos do
edifício, sem exceção, dizendo "Eu não falei? A Cininha tá grávida, tá
esperando um nenê, eu não falei? Essa nunca me enganou, viu!".
A noite daquele fatídico sábado foi de
vigília e insônia. Todos os telefones do edifício tocaram. E não houve quem
dormisse, pois se ainda não tinham recebido o telefonema com a confirmação da
gravidez de Cininha, ficaram esperando por ele. Vizinhança é desse jeito mesmo,
dizem alguns estudos. Seu Olegário, contudo, com seu jeitão desinteressado, nem notou que o seu edifício estava nesse
rebuliço todo. A gravidez de Cininha, a pobrezinha que comera quase uma pizza
inteira e se empanturrara de macarrão com atum na noite de sexta-feira, já
estava devidamente decretada por obra e graça da dona Tavinha.
Cininha ainda se encontrava indisposta na
manhã da segunda, e nem saiu para ir ao colégio. O telefone de seu apartamento tocou
logo às seis da manhã. Do outro lado da linha ouviu uma voz indefinida, que
poderia ser de qualquer um. Cininha não a reconheceu, sonolenta e ainda
indisposta como se encontrava. "Quem foi que comeu, heim, Cininha?" E
pimba! Desligou.
Mas o seu Olegário, que até então se
mantinha impassível e sereno, ouvira na extensão lá da sala que, por mero
acaso, havia atendido simultaneamente à filha. Então ele resmungou, andou de um
lado a outro por alguns minutos e por fim decidiu. Abriu a porta do quarto de
Cininha e ordenou: “Cininha, levanta e se arruma que nós vamos sair”. E lá se
foram, pai e filha, ver um médico.
"Tanto mal-estar não se justifica,
doutor", ponderou seu Olegário. Mas
o doutor apenas recomendou muita calma e um pouco de sal-de-fruta. Como seu
Olegário insistisse tanto com as insinuações de gravidez que ouvira, o médico acabou
encaminhando a menina para os exames necessários.
Sei que depois desse fim de semana da
indisposição da menina a coisa se avolumou demais da conta. Foram dois ou três
dias de angustiante espera. Não que isso tenha desestimulado a língua da dona
Tavinha, a do 21! Pelo contrário, este foi seu assunto principal a ser tratado com
porteiro, faxineira, zelador e quem mais cruzasse a portaria do edifício, onde
ela manteve-se em vigília permanente. E isso durou até a quarta-feira, quando
seu Olegário e Cininha saíram novamente, em retorno ao médico e com o envelope
dos exames debaixo do braço.
Seu Olegário chegou a ficar sem fôlego
enquanto aguardava que o médico abrisse o envelope, olhasse e sorrisse.
"Tem certeza, doutor?", disse quase ofegante seu Olegário, que mantinha
a respiração pela metade, tamanha era sua ansiedade em saber do diagnóstico sobre
sua Cininha, tida e havida como grávida por todos no condomínio, graças à
eficiente e pontual ação da lingua ferina de dona Tavinha, a vizinha do 21.
Mas que grande filha-da-puta que é essa
minha vizinha, pensou seu Olegário ao final do diagnóstico que indicava apenas um
bom regime para Cininha. O feitio do corpo era, na verdade, apenas a comilança
desenfreada da menina nos últimos tempos, coisa própria da idade e que precisava
ser controlada. “Gravidez coisa nenhuma, seu Olegário!” asseverou o doutor
olhando para ele e para Cininha, que chegou a esboçar um sorriso, mas disfarçou
muito bem e apenas manteve-se impassível e serena.
Por via das dúvidas, seu Olegário tomou ali
mesmo algumas decisões: não iria mais pedir pizzas nas sextas-feiras. Macarrão com
atum e molho de tomate só se fosse durante os almoços de domingo. Ficaria de
olho na menina e na porta da geladeira. E quanto a dona Tavinha, aquela cretina
do 21... Bem, ele ainda iria pensar sobre isso. ___________________________________________________________
Apresentado na Pizza Literária da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores
21.08.2014
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Um comentário:
Gostei muito. Muito mesmos!
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