NO ANO DE 2005, em que se
comemora quatro séculos do lançamento desta que é uma das maiores obras
ficcionais de toda a literatura universal, me ocorreu dar uns “pitacos” na
magistral criação do “colega” Saavedra, com perdão pela ousadia e pelo mal
entendimento das coisas. Mas faço isso somente por ter me certificado, mais uma
vez, de que a vida imita a arte. E esta àquela, tanto faz...
Cada
vez mais me convenço que Miguel de Cervantes de Saavedra foi humilíssimo
quando, dirigindo-se em carta ao Duque de Bêjar, Marquês de Gibraleão, Conde de
Benalcázar y Banhares, Visconde da Puebla de Alcocer, Senhor das Vilas de
Capilha, Curiel e Burguilhos, apresentou e pediu proteção à obra que estava
disposto a trazer à luz, qual fosse: “As
aventuras do engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha ”.
Mal
sabia o “colega” escritor Miguel de Cervantes Saavedra, nascido em Alcalá de
Henares em 1547 e morto em 1616 em Madrid, Espanha, o que resultaria de sua
respeitosa missiva, embora esta já viesse com um ar um tanto arrogante quando
pretendia que seu livro fosse “...o mais formoso, o mais galhardo e discreto
que se pudesse imaginar...” De formoso e
galhardo o livro teve tudo, isto é verdade. De discreto, porém, Dom Miguel não
teve nada, pois se intrometeu em tanta coisa íntima dos leitores dos quatro
séculos que o sucederam, que valeria escrever um tratado a respeito.
Semelhantemente
aos personagens de Cervantes, há hoje em dia um número cada vez maior de seguidores
de sua obra, o que a perpetua e a conduz a esse patamar inigualável de quatro
séculos na lista dos 10 mais lidos. Não
falo somente de leitores, nem do livro, mas de pessoas que, influenciadas por
sua narrativa, tenham assumido as “personalidades” de suas personagens. Há aqui uma sutileza psicológica ímpar que decerto
não será decifrada por um leigo como eu. Portanto, me abstenho de qualquer
julgamento nesse sentido.
Citar
exemplos dessas “condutas quixotescas” seria algo muito interessante, mas
bastante temerário. As verdades não costumam ser aceitas pacificamente pelos
que se investem dessas personagens, devido às cômicas enrascadas em que acabam
se metendo. Por outro lado, poderíamos ter perigosas recidivas, o que por si só
desaconselha qualquer citação contemporânea. Obrigado, mas não precisamos das sandices
do cavaleiro da triste figura e de seu fiel escudeiro, exceto nas imortais
páginas escritas por Miguel de Cervantes.
Na
sua tresloucada paixão pela defesa dos valores morais, Dom Quixote se eriçou
contra uns tantos moinhos de vento que encontrou em seu caminho, supondo-os
terríveis monstros. Talvez seja esta a parte mais lembrada de toda a sua epopéia.
Quem sabe a mais significativa. Endoidecido pelas
leituras dos intermináveis feitos dos cavaleiros andantes da literatura
medieval, aquele pobre e provinciano cinquentão também decidiu-se por se tornar
um errante, afim de "endireitar os tortos e desfazer agravos e
sem-razões". Para isso compôs um séquito formado por campônio, seu vizinho,
a quem deu status de fiel escudeiro e
de um pangaré, a quem garbosamente denominou Rocinante. Uma bacia de barbeiro
serviu-lhe de elmo de Mambrino e toda sua epopéia foi dedicada a uma simples
camponesa de sua região, transformada na donzela Dulcineia de Tomboso, por quem
lutaria até a morte.
Creio
que a história de Dom Quixote e de seu fiel escudeiro não se perpetuou somente
pelo seu mágico e utópico enredo, mas também pelas mensagens que pretendia
transmitir, embora Saavedra nem suspeitasse delas naquele momento. Vejam que
sábia é a arte! E vejam quão susceptível ela é a imitações pela vida ou pelos
viventes ao longo do tempo.
Talvez
pudessem ser contadas aqui, a título de ilustração, algumas histórias de uns
tantos quixotes e panças contemporâneos que, como cavaleiros andantes, se lançam
contra monstros irreais e imaginários, querendo partí-los ao meio com um só golpe de espada, ou lutando sem esmorecimento contra cem
ou duzentos outros deles de uma só vez. Talvez se pudesse falar um pouco de inatingíveis
donzelas, sempre recolhidas em seus claustros e vendo o mundo atrás dos
frestados de suas janelas, mas permanentemente em perigo e sempre ameaçadas por
vilões perversos.
Mas seria perda de tempo e uma
inútil deturpação de aventuras semelhantes, tão bem contadas pelo soldado Miguel
de Cervantes que, na infernal batalha de Lepanto, em 1571, quando a Cristandade
recuperou o controle sobre o Mediterrâneo, portou-se valentemente. Só que foi
atingido por um tiro do arcabuz de um turco que lhe secou a mão esquerda,
frustando-lhe assim o grande desejo de brilhar como soldado. Sorte nossa, pois
a partir de então Cervantes dedicou-se a enfeitiçar milhões de leitores pelo
mundo todo, com suas proezas desastradas e hilariantes, fazendo de sua obra o
maior legado do humanismo espanhol em todos os tempos.
Sou avesso a um grande número de
vídeo-games violentos e sem sentido, inúteis e que só instigam uma parte
muito superficial e completamente dispensável de nossa suprema inteligência,
embora tentem acirrar nosso raciocínio lógico. Da mesma forma sou avesso aos
cavaleiros andantes modernos que vêem em qualquer moinho de vento um monstro
terrível e maléfico, e quando pensam que o divisam, atiram a esmo, sem receio
de qualquer consequência que possam causar aos que nada têm a ver com sua fúria
injustificada... São inúteis, tanto uns quanto
outros!
Para
não precisar pensar neles como um perigo, há, portanto, que deixá-los guerrear
para que não percam a armadura e mantenham algo da dignidade que julgam ter e
defender, embora esta se desvaneça em cada vão embate que empreendem. É preciso
esperar com paciência que recuperem a lucidez. Foi
assim com o legítimo Dom
Quixote, que, estando no leito de morte ditando seu testamento,
readquiriu a identidade prosaica de Alonso Quijano, o Bom, e passou a
distribuir com bondade e benevolência os seus bens entre aqueles que o amaram
com lealdade, a começar, naturalmente com seu querido Sancho Pança, a quem
prometera dar uma ilha para que pudesse governar.
E lá se vão quatro séculos da
criação desta magnífica história... Aliás, agendei mais uma releitura de Dom
Quixote de La Mancha
assim que pensei em escrever esta crônica. Estou apenas no começo de minha nova
aventura pelos cenários desse cavaleiro andante, quatrocentos anos depois.
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Pulicado no Anais da VIII Jornada Médico Literária Paulista
Serra Negra - SP - 22 a 25 de setembro de 2005
Rumo Editorial (SP)
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