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19.3.16

Sobre quixotes, panças, gigantes, moinhos de vento e outras quimeras

     
 
NO ANO DE 2005, em que se comemora quatro séculos do lançamento desta que é uma das maiores obras ficcionais de toda a literatura universal, me ocorreu dar uns “pitacos” na magistral criação do “colega” Saavedra, com perdão pela ousadia e pelo mal entendimento das coisas. Mas faço isso somente por ter me certificado, mais uma vez, de que a vida imita a arte. E esta àquela, tanto faz...
            Cada vez mais me convenço que Miguel de Cervantes de Saavedra foi humilíssimo quando, dirigindo-se em carta ao Duque de Bêjar, Marquês de Gibraleão, Conde de Benalcázar y Banhares, Visconde da Puebla de Alcocer, Senhor das Vilas de Capilha, Curiel e Burguilhos, apresentou e pediu proteção à obra que estava disposto a trazer à luz,  qual fosse: “As aventuras do engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha”.      
            Mal sabia o “colega” escritor Miguel de Cervantes Saavedra, nascido em Alcalá de Henares em 1547 e morto em 1616 em Madrid, Espanha, o que resultaria de sua respeitosa missiva, embora esta já viesse com um ar um tanto arrogante quando pretendia que seu livro fosse “...o mais formoso, o mais galhardo e discreto que se pudesse imaginar...”  De formoso e galhardo o livro teve tudo, isto é verdade. De discreto, porém, Dom Miguel não teve nada, pois se intrometeu em tanta coisa íntima dos leitores dos quatro séculos que o sucederam, que valeria escrever um tratado a respeito.
            Semelhantemente aos personagens de Cervantes, há hoje em dia um número cada vez maior de seguidores de sua obra, o que a perpetua e a conduz a esse patamar inigualável de quatro séculos na lista dos 10 mais lidos.  Não falo somente de leitores, nem do livro, mas de pessoas que, influenciadas por sua narrativa, tenham assumido as “personalidades” de suas personagens.  Há aqui uma sutileza psicológica ímpar que decerto não será decifrada por um leigo como eu. Portanto, me abstenho de qualquer julgamento nesse sentido.
            Citar exemplos dessas “condutas quixotescas” seria algo muito interessante, mas bastante temerário. As verdades não costumam ser aceitas pacificamente pelos que se investem dessas personagens, devido às cômicas enrascadas em que acabam se metendo. Por outro lado, poderíamos ter perigosas recidivas, o que por si só desaconselha qualquer citação contemporânea. Obrigado, mas não precisamos das sandices do cavaleiro da triste figura e de seu fiel escudeiro, exceto nas imortais páginas escritas por Miguel de Cervantes.
            Na sua tresloucada paixão pela defesa dos valores morais, Dom Quixote se eriçou contra uns tantos moinhos de vento que encontrou em seu caminho, supondo-os terríveis monstros. Talvez seja esta a parte mais lembrada de toda a sua epopéia. Quem sabe a mais significativa. Endoidecido pelas leituras dos intermináveis feitos dos cavaleiros andantes da literatura medieval, aquele pobre e provinciano cinquentão também decidiu-se por se tornar um errante, afim de "endireitar os tortos e desfazer agravos e sem-razões". Para isso compôs um séquito formado por campônio, seu vizinho, a quem deu status de fiel escudeiro e de um pangaré, a quem garbosamente denominou Rocinante. Uma bacia de barbeiro serviu-lhe de elmo de Mambrino e toda sua epopéia foi dedicada a uma simples camponesa de sua região, transformada na donzela Dulcineia de Tomboso, por quem lutaria até a morte.
            Creio que a história de Dom Quixote e de seu fiel escudeiro não se perpetuou somente pelo seu mágico e utópico enredo, mas também pelas mensagens que pretendia transmitir, embora Saavedra nem suspeitasse delas naquele momento. Vejam que sábia é a arte! E vejam quão susceptível ela é a imitações pela vida ou pelos viventes ao longo do tempo.
            Talvez pudessem ser contadas aqui, a título de ilustração, algumas histórias de uns tantos quixotes e panças contemporâneos que, como cavaleiros andantes, se lançam contra monstros irreais e imaginários, querendo partí-los ao meio com um só golpe de espada, ou lutando sem esmorecimento contra cem ou duzentos outros deles de uma só vez. Talvez se pudesse falar um pouco de inatingíveis donzelas, sempre recolhidas em seus claustros e vendo o mundo atrás dos frestados de suas janelas, mas permanentemente em perigo e sempre ameaçadas por vilões perversos.
            Mas seria perda de tempo e uma inútil deturpação de aventuras semelhantes, tão bem contadas pelo soldado Miguel de Cervantes que, na infernal batalha de Lepanto, em 1571, quando a Cristandade recuperou o controle sobre o Mediterrâneo, portou-se valentemente. Só que foi atingido por um tiro do arcabuz de um turco que lhe secou a mão esquerda, frustando-lhe assim o grande desejo de brilhar como soldado. Sorte nossa, pois a partir de então Cervantes dedicou-se a enfeitiçar milhões de leitores pelo mundo todo, com suas proezas desastradas e hilariantes, fazendo de sua obra o maior legado do humanismo espanhol em todos os tempos.
            Sou avesso a um grande número de vídeo-games violentos e sem sentido, inúteis e que só instigam uma parte muito superficial e completamente dispensável de nossa suprema inteligência, embora tentem acirrar nosso raciocínio lógico. Da mesma forma sou avesso aos cavaleiros andantes modernos que vêem em qualquer moinho de vento um monstro terrível e maléfico, e quando pensam que o divisam, atiram a esmo, sem receio de qualquer consequência que possam causar aos que nada têm a ver com sua fúria injustificada...  São inúteis, tanto uns quanto outros!
            Para não precisar pensar neles como um perigo, há, portanto, que deixá-los guerrear para que não percam a armadura e mantenham algo da dignidade que julgam ter e defender, embora esta se desvaneça em cada vão embate que empreendem. É preciso esperar com paciência que recuperem a lucidez. Foi assim com o legítimo Dom Quixote, que, estando no leito de morte ditando seu testamento, readquiriu a identidade prosaica de Alonso Quijano, o Bom, e passou a distribuir com bondade e benevolência os seus bens entre aqueles que o amaram com lealdade, a começar, naturalmente com seu querido Sancho Pança, a quem prometera dar uma ilha para que pudesse governar.
            E lá se vão quatro séculos da criação desta magnífica história... Aliás, agendei mais uma releitura de Dom Quixote de La Mancha assim que pensei em escrever esta crônica. Estou apenas no começo de minha nova aventura pelos cenários desse cavaleiro andante, quatrocentos anos depois.
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Pulicado no Anais da VIII Jornada Médico Literária Paulista
Serra Negra - SP - 22 a 25 de setembro de 2005
Rumo Editorial (SP)

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