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6.11.16

Passagens


Certa vez foi marinheiro, daqueles de navio de longo curso. Aportou em tanto lugar que nem sabia mais. Desse tempo guardou apenas as calmarias, embora tivesse juntado um pouco da angústia de uma ou outra tempestade no fundo de um porão qualquer. E um dia foi também um seixo que vigiou caminhos, pois foi levado por viajantes e abandonado em outros lugares algumas vezes. Dessa existência pétrea guardou apenas o silêncio, que já era grande demais para que outra coisa coubesse. De outra feita foi apenas uma rajada de vento e, de tão breve, quase nada guardou. Mal teve tempo de juntar um pouco da ansiedade, pois de repente, já havia passado.


Quando lhe avisaram que seria menestrel soube ser taciturno o suficiente para que as paredes medievais não se impregnassem de tédio. Guardou somente alguns vazios e um pouco de melancolia, pois talvez viesse precisar. Bem depois, quando foi anjo, guardou apenas serenidade. Mas em grande quantidade, pois era imensa sua falange e abundantes demais os eflúvios que dela emanavam. E ainda foi muito mais: foi outonos e uma cotovia, foi um cajado de eremita e também pétala de orquídea. Até que se cansou de ser e foi deixando pelos caminhos tudo o que tinha guardado. Passou a esperar. Ora com a alma serena e silenciosa, ora com um pouco de aflição. E assim foi toda sua espera, até que um dia não foi mais nada.  

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Publicado na coletânea "A Pizza Literária - sexta fornada"
Legnar Editora - São Paulo - 2000

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