Este caso me confidenciou o próprio
personagem. Como eu conheço tanto ele quanto ela, ouvi tudo com muita
apreensão, tendo o cuidado de prometer guardar segredo e não dizer nada a
ninguém. Depois de ouvir aquela história eu já não sabia se ria ou se me
mantinha sereno e circunspecto diante das estrepolias amorosas de meu
confidente. No fim da sua narrativa, ora em tom de bravata, ora de confissão,
ele surpreendentemente me liberou do segredo, dizendo: “Só não diga que fui eu
que te contei, tá? Se alguém vier perguntar, diga que é uma dessas histórias
que você inventa e escreve em seus livros”.
Bem, já que fui liberado, lá vai. Do jeitinho que ele me contou.
*
As
estratégias dos pecados dela, hoje é que eu penso assim, eram tão arriscadas
quanto jocosas. Quem sabe copiando aqueles enredos rocambolescos dos filmes da
sessão da tarde que misturam romance, ação, suspense e um pouco da sacanagem
implícita nas quase sempre previsíveis tramas de Hollywood. Quem sabe
parodiando, e muito amadoristicamente, alguns daqueles romances famosos, dos
que colocavam num mesmo caldeirão, os perigos do proibido, o fervor dos grandes
pecados, a iminência da morte e do desejo, tudo isso ardendo e fumegando a um só
tempo, na mesma panela ou leito em que houvesse um espelho no teto, perdidamente
distante em algum lugar que encontrassem, fossem eles entendidos como
insuspeitos e não sabidos, ou fosse à primeira entrada de um motel de preço
razoável onde o retrovisor não mostrasse perigo à vista. Tudo numa pecaminosa
inocência, bem louca, bem desavergonhada, bem sacana, como se fosse coisa da
mais irresponsável e inconsequente aventura da adolescência.
Quando
ela veio me contar o que vinha fazendo há algum tempo e com uma frequência tão
grande, eu pensei: "Você é uma louca completa. Isso vai dar merda! Contenha-se,
menina!". Na verdade eu já sabia desse jeito despojado e inconsequente dela
tratar as coisas, mas sempre achei que, para uma mulher casada, ela deveria ter
um pouco mais de cuidado. Não tinha! Como um soco no meu rosto, eu soube e
senti que ela vinha dando muita chance para o azar, agora que parecia ter
assumido que poderia ser tão irresponsável quanto lhe desse na telha. Imaginei
até o quanto pudesse estar infeliz num casamento de tantos anos e por que razão
tinha resolvido esculhambar de vez a relação, dando suas escapadas. Mas, a esta
altura, o que há para ser feito? Ouvi seu "desabafo" e engoli em
seco. Fiquei totalmente sem jeito de insinuar qualquer coisa ou providência que
ela pudesse adotar. Pasmei!
Minha
apreensão não teria nenhuma influência em tudo o que houve depois, não fosse um
pequeno detalhe. Mesmo porque eu me abstive de comentar, opinar ou dizer o que
fosse para aquela descabeçada, quando ela me contou tudo com solidária confiança;
o que de pronto me lembrou em muito aquela estória da mulher trancada no
armário: quando quer, trai o marido com o cabide.
Essa mulher...
Fogosa, escultural, ardente e tão mal-amada assim, a ponto de trair o marido
apenas por vingança? Pensei: "Não!
é uma baita duma ninfomaníaca, isso sim!". Mas fechei o bico e fiquei na
minha, pois xibiu da mulher dos outros não é da minha conta. Ainda mais quando
se trata do xibiu dela, cujo marido eu conheço e respeito muito, mesmo porque o
muque dele é bem maior que o meu. E principalmente porque xibiu de mulher
fogosa e muque de marido bravo e traído não devem se misturar na mesma trama.
Ah, em
que porcaria de situação ela me deixou! Hoje até posso dizer: "... gostosa,
fogosa e despachada mulher... Fosse você outra criatura e eu não teria lhe dado
ouvido”. Mas eu não disse isso no dia
que tinha que ser dito e tudo foi acontecendo como tinha que ser... Ah, mulher,
mulher, sua tranqueira... Aconteceu e foi bem no dia em que ela me pediu total cumplicidade,
coisa que já existia, e álibi para mais um arrojado projeto para o próximo
encontro pecaminoso com seu amante, coisa de cujos detalhes eu estava cada vez
mais íntimo.
Eu
disse: "você tá louca, menina? Ele vai desconfiar e descobrir tudo e aí, danou-se!".
Ela me disse: "Cagão! Se tá com medo me diz logo que eu arrumo outra
desculpa e um cara mais gostoso!". Naquele momento eu pude pensar pela
primeira vez no roteiro de um thriller, com muito sangue, devassidão e pecado
na cena culminante de um filme classe B. Agora estava tudo perdido. Ela, louca
como era, iria por o seu casamento para escanteio, chutando o pau da barraca.
Já havia demonstrado todo seu desprezo, descompromisso e devassidão. Ai, ai,
ai...
Em resumo:
ela queria ligar para ele, no meio da manhã, e dizer que tinha sofrido um pequeno
acidente de trânsito. Vê se pode! E dizer que eu, "por um acaso do destino",
estava passando pelo local e a teria socorrido e levado para um hospital... Que
bosta de trama! Perfeito só na cabeça dela. Naquela cabecinha pequena, ela
imaginava que, até que as coisas e as informações todas chegassem aos destinos,
e tudo fosse apurado e que fosse justificada a ausência dela no trabalho
naquele dia, já teriam se passado mais das três horas regulamentares do motel...
E depois era só inventar uma outra história qualquer... "Lá se vai minha
vida para o brejo", pensei.
Naquele
dia o trânsito estava terrível. O meu trajeto de 1,5 km até a estação de metrô
onde estava marcado nosso encontro já estava durando mais que uma hora!
Normalmente se faria em menos de 10 minutos. Meu celular tocou, pontualmente, a
cada três minutos. Era ela perguntando:
onde você está? Eu dizia o número do prédio na avenida em que eu estava parado
na merda do congestionamento. “E agora?” - dois minutos depois. Parado no mesmo
lugar, eu disse. "NÃO GOSTO DE FICAR ESPERANDO", ela gritou e
desligou. Doze segundos depois ela ligou de novo e disse que se eu não chegasse
num minuto ela iria embora. Desligou. Quinze segundos depois ela ligou novamente
e disse: "Estou no banheiro da estação. Desceu!". "Desceu o que?,
eu perguntei". E ela respondeu: "Desceu!
Meu dia de princesa... estou no meu dia de princesa. Entendeu? Vou pegar o trem
de volta".
Aquilo
me subiu um sangue do cão, mais do que o dela houvesse descido. Foi um nervoso
tão grande com aquela pasmaceira do trânsito me trancando e com o calor que o
ar condicionado do carro já não mais arrefecia que eu dei um ultimato:
"Você não vai pegar porra nenhuma de trem de volta! Fica aí bem na tua que
eu to chegando rapidinho e hoje vai rolar daquele jeito que você adora e nunca
permitiu! E você que não esteja aí pra você ver quem é que vai ligar pra ele
dando o álibi do atropelamento”!
Naquele
dia ela mostrou que tinha muito potencial para garantir seu casamento e que gostava
de uma variação de vez em quando. Não sei se foi assim que eu a convenci a
manter-se casada e que desse uma sossegada no facho... Foi isso.
*
Nem
sei o que houve depois, mas tudo bem que assim seja. Pelo menos por enquanto.
Ela continua casada. Aos trancos e barrancos, a coisa tá caminhando. Sei lá se
voltaram a se encontrar. Eu os vejo de vez em quando, como se nada houvesse. Mais
não digo, pois nada acrescentaria ao caso.
Publicado na coletânea "Corpos Ardentes" - PerSe Editora - SP - 2019
2 comentários:
Muito fogo no rabo... Legal a tua história.
Muito fogo no rabo dessa personagem. Adorei.
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