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10.8.19

Um velho arquivo de Word chamado saudade



(para ela, em agosto de 1999)
Já é agosto e muito ou quase nada aconteceu. Escrevi alguns poemas e passei a usar óculos. Assisti à televisão e fui almoçar fora algumas vezes. Ouvi uma música antiga, que há tempos não tocava. Aproveitei o último sábado para engraxar meus sapatos. Recebi telefonemas e publiquei uma crônica no jornal. Soube que uma ex-namorada se casou pela terceira vez. Comprei uma estante nova para o meu computador. Fui premiado num concurso de contos do qual nem me lembrava. Fiquei com saudades dela. Escrevi um e-mail, pois as férias já se acabaram. Espero que ela já esteja de volta e me escreva, pois já é agosto, e muito ou quase nada aconteceu. Daqui a pouco será setembro de ficar mais velho. Ah... Mas isso acontece a toda hora e nem valeria a pena ter citado. Eu é que resolvi escrever meia dúzia de palavras, pois me deu saudades dela, que está fora há mais de mês. Será que ela está bem e vai voltar?

(para ela de novo, em outubro de 2000)
Já se passou outro agosto e quase tudo continua igual. Escrevi alguma coisa aqui e acolá. Deixei de almoçar fora e me acostumei com o trivial. Desisti de ver televisão, pois tudo se repete, cansativamente. Ainda ouço música antiga, pois não comprei mais nenhum CD. Não engraxei mais os sapatos, pois resolvi que isso é uma tremenda bobagem. Quase sempre peço para dizer que não estou quando me chamam ao telefone. Só quero estar sem falar com alguém de vez em quando. Aprendi a cultuar o silêncio, outra mania besta... Só não deixei de publicar crônicas, pois isto é mais que um vício: é obrigação. A notícia daquela ex-namorada que casou pela terceira vez não me fez mal nenhum. Tanto é que estou vivo. Mas fiquei intrigado, tentando saber como é que aquela danada conseguiu se livrar de mim muito antes de seu segundo divórcio. Eu era apaixonado por aquela porcaria de menina... Minha estante nova do computador perdeu a garantia justamente um dia depois de ficar bamba. 

(para a saudade, em abril de 2002)
Senhora saudade, você é uma idiota! Fez-me perder um tempo danado na frente da tela de meu computador, escrevendo cartas, fazendo versos, pensando na palavra seguinte. E não se abalou por nada, em nenhum momento. Todas as coisas que eu pensei que fariam sentido, não fizeram. Senhora dona saudade, nunca vi ninguém tão insensível quanto você, valha-me Deus!

(para mim mesmo, em junho de 2003)
Se isto fosse um diário, seria uma verdadeira aberração. Primeiro por não guardar qualquer coerência entre uma anotação e outra, a não ser certa nostalgia e um gosto amargo em cada letra. E depois, por não conter exatamente o que deveria. A grande aberração é sempre essa: a verdade que se emaranha na alma, se confunde com ela e não transparece mais, de jeito nenhum.

(para quem quer que seja, em outubro de 2003)
Abri novamente esta porcaria de arquivo por acaso. Procurava outros escritos e me deparei com estas anotações, que nem são lá essas coisas. Só dor de cabeça e desânimo... Mas já que estou por aqui, e só para retomar o curso desta pouca história, informo que recebi um e-mail dela, dia desses, anunciando a publicação de um livro. Vai ver foi por isso que andou sumida esse tempo todo. Pena que não serve mais para se compartilhar como naqueles tempos em que nos conhecemos numa lista de mensagens na internet. Alguma coisa mudou sua cabeça. Tanto que ela se tornou cega e muito diferente do que quando a conheci. Naquele tempo havia mais doçura em suas palavras.

(para mim mesmo, em março de 2004)
Tomei consciência do limbo nosso de cada dia, onde chafurdamos todos, pois não há escapatória neste rumo pouco plausível que definimos para nós mesmos. Os hipócritas a cada dia se esmeram mais, os falsos estão cada vez pior, os insolentes cada dia mais atrevidos, os pobres cada dia mais rotos, os indecentes cada dia mais indecentes, os criminosos cada dia mais ousados e os declaradamente podres cada dia fedem ainda mais... Enfim, é quase tudo igual ao antes, com o agravante de ser tudo um pouco pior.  Uma mesmice que nunca termina e um mentir que não se acaba; uma falsidade que não tem fim e um martírio eterno.  Ah... Só para constar: nunca mais ouvi falar dela, pois me ausentei de quase tudo que era virtual. Quase tudo. Restam alguns poucos sobreviventes, dos quais passarei a exigir alguma reciprocidade. Sem qualquer resquício dos enganos virtuais, percebi que meus sapatos são os mesmos de 1999, só que muito mais puídos e gastos. O preto já se parece mais com um jacaré. Lembrei de repente de alguém que me disse: Eita vidinha besta!

(para todos e especialmente para a saudade, em maio de 2019).
... Olha só cada coisa mais esquisita nós pensamos e escrevemos. Por isso que é legal ir guardando estas bobagens todas, estes arquivos inúteis, sem qualquer outro objetivo senão o da prevenção para que nada disso volte a acontecer... Mas o pior é que acontece... Já não tenho tanta certeza se um dia não voltarei a abrir este arquivo.
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Publicado nos Anais da XV Jornada Médico-literária Paulista 
e X Jornada Nacional da Sobrames - Rumo Editorial - SP - 2019  


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