O primeiro deles que
se deixou ver apareceu durante o dia, numa das raras manhãs sem chuva. Entrou
pelo portão da praia, sob os olhares de todos que já estavam despertos. Não tinha a aparência assustadora, como se
imaginava e, portanto, sua chegada não causou nenhum alvoroço. Era pequeno,
menor ainda do que o supunham. Roupas muito sujas, confundindo-se com a própria
sujeira das pernas e das mãos finas que trazia à mostra. Caminhou com passos
rápidos entre as pessoas que se esquivavam. Contrastando com toda sua
fisionomia, tinha nos olhos um brilho vivo e sagaz. Talvez, por isso, ninguém
ousou permitir que seus olhares se cruzassem. Baixavam o rosto à sua passagem
ligeira e indiferente a tudo e a todos.
Embora
não causasse pânico ou qualquer outra atitude mais evidente, a presença daquela
criança andrajosa provocou uma palpável sensação de incômodo. Não o enxotaram e
tampouco lhe dirigiram a palavra. No entanto, esquivaram-se dela como se lhes
causasse asco ou repulsa. Ninguém trocou sequer uma palavra a respeito daquela
inusitada aparição, mas todos sabiam que o pequeno, sujo e maltrapilho, lançara
seu olhar faiscante na direção de cada porta aberta e de cada um que cruzou seu
caminho em sua rápida passagem pelo casario. Alguns viram também quando um cão
afastou-se ganindo, enquanto o pequeno transpunha o portão que conduzia às
montanhas, mastigando alguma coisa. Durante todo o resto daquele dia, as
pessoas olharam com apreensão para o portão da praia e para todos que por ali
passaram. Até mesmo para as crianças do lugar.
Quando
aquele dia acabou, trazendo consigo a escuridão encharcada pela chuva que
voltou a cair, um silêncio cúmplice tomou conta da noite. Até mesmo os sons
costumeiros pareciam mais abafados, ainda que sempre o tivessem sido pela
invariável e monótona sinfonia da chuva sobre os telhados. Houve uma nítida
impressão que os talheres se tocaram menos em cada mesa e que as vozes se
fizeram sussurradas. As pessoas se recolheram mais cedo e as portas se fecharam
antes. Essa foi a maior evidência de que alguma coisa parecia preencher o ar
espesso e carregado, denotando que algo havia mudado naquele lugar. Seria
apenas mais uma noite como outras tantas, não fosse ter aparecido por ali
aquele menino andrajoso.
E
foi uma noite interminável. Parecia que a chuva era muito mais intensa do que
em qualquer outra noite. Ou talvez chovesse como de costume, mas os sons da
água batendo nos telhados estivessem mais audíveis, acentuados pela insônia que
se apoderou de cada um, em cada quarto, sob cada teto. Olhos e ouvidos
permaneceram em atenta vigília, embora a noite se deixasse escorrer na mesmice
da chuva que parecia nunca mais terminar.
E que de fato não parou quando o dia amanheceu. E foi somente depois
dessa longa noite em que cada mente catalisou para si a ameaça travestida de andrajos,
que de fato algo mudou.
Até
então não sabiam que uma silenciosa mudança já havia começado muito antes
daquela primeira aparição. Cada um daqueles homens e mulheres conviveu por
muito mais tempo com a perspectiva de mudanças, sem jamais se dar conta de que
elas já vinham acontecendo lentamente, como o musgo que dia-a-dia cobria seus
telhados. Foi preciso que o primeiro menino maltrapilho de olhos faiscantes
aparecesse, em plena luz do dia, para que começassem a trancar as portas mais
cedo e, com ela, os seus próprios medos.
Então
puseram-se num estado letárgico e impotente de espera. Uma angustiante espera
por algo que lhes aconteceria, que não poderiam supor o que fosse e em que
momento aconteceria. A hora da mudança definitiva se lhes afigurou clara e
insofismável, personificada naquele menino franzino, sujo e de olhos que lhes
perscrutava. a alma.
*
Os primeiros a mencionar que
provavelmente deixariam o lugar foram os donos das maiores e mais bonitas casas
de veraneio. Foram os que mais sentiram ameaçada a sua pretensa hegemonia. Tão
logo se instalaram por ali alguns outros veranistas e ergueram suas casas mais
simples, já se podia notar que a ostentação hipócrita passou a dar lugar a um
desdém mal-dissimulado por sorrisos forçados e distribuídos com certa
parcimônia. Estes foram os primeiros a supor que sua integridade estava
ameaçada pela aparente deterioração que se insinuava pela presença dos novos
vizinhos menos abastados. E postaram-se em defensiva.
Aos
poucos se deixavam fazer íntimos e por vezes afáveis, como se dessem a seus
inoportunos novos vizinhos a corda para a própria forca. A cada gesto amistoso
que procuravam demonstrar, faziam evidenciar que havia uma distância a ser
guardada pelo invisível, mas palpável, muro da hipócrita ostentação que a cada
dia acentuavam. Certamente isso tudo era muito bem compreendido pelas partes,
uma vez que guardavam prudente distância uma da outra. Cada qual cavando sua
trincheira.
O
tempo, em sua sábia trajetória, fez com que as camadas desse limbo fossem se
assentando sobre os telhados de cada um, indiferentes. Menos diferença fez o
limbo sobre as casas mais simples, pois estas já tinham visto chuva e umidade
suficientes para saber conviver com eles. E, ainda assim, sentiam-se sufocar
pelo acre bolor que exalava cada vez com mais profusão daquelas casas. E não
estranharam quando os primeiros se foram, deixando para trás o mofo em suas
paredes e pegadas fundas nas poças de lama do caminho até o portão que saía
para as montanhas. Isso aconteceu logo
após as primeiras noites de chuva intensa, quando os pequenos começaram a fazer
suas invisíveis incursões noturnas pelas vielas escuras.
*
Nos
últimos tempos, a vigilância parecia mais ostensiva e os intervalos entre as
rondas haviam diminuído sensivelmente. A cada pouco podia-se perceber um
pequeno vulto cinzento esgueirando-se rápido e dissimulado pelas vielas
escuras, desaparecendo a seguir nas sombras dos becos entre uma casa e outra.
Algumas frestas das janelas do casario deixavam escapar fiapos de luz que se
projetavam nas poças de lama. Quando não havia chuva, o silêncio só era
quebrado pelo distante e abafado som dos animais noturnos e por ruídos próprios
da escuridão. Mas a presença deles era pressentida à menor oscilação do vento,
como se sua própria respiração os revelasse entre a folhagem dos arbustos. Ou
então pelo ruído mais audível de pés que pisavam os charcos. Eram os pés deles,
com certeza.
Tanto
o portão das montanhas quanto o da praia eram trancados assim que a noite
chegava. Embora não pudessem vê-los, sabiam que ali os pequenos concentravam
sua vigilância e por isso ninguém mais ousava transpor os portões depois que
escurecia. Temiam um ataque, apesar de saberem que isso nunca ocorrera antes e
de acalentarem a íntima esperança de que isso não viria ocorrer. Nem mesmo
quando da última fuga isso aconteceu. Naquela vez, a noite encheu-se de uivos
lancinantes e os pequenos vultos cinzentos e sorrateiros cruzaram os becos
incontáveis vezes. Ninguém ousou manter luzes acesas, mas sabia-se que em cada
fresta das janelas havia olhos medrosos tentando vislumbrar qualquer vulto na
escuridão. Depois, quando as primeiras luzes silenciaram de vez a agonia dos
pequenos, soube-se que estes não haviam impedido a fuga. Talvez porque o único
a escapar fosse velho e bêbado e o achassem inútil.
As
aparições passaram a ser cada vez mais frequentes e numerosas. A cada manhã sem
chuva surgiam de ambos os portões, incontáveis pequenos vultos cinzentos e maltrapilhos,
tão sujos quanto as poças de lama que se acumulavam nos caminhos e nos becos.
Eram extremamente silenciosos no seu vagar pelas vielas entre as casas.
Aguçavam seus olhos faiscantes em todas as portas abertas e em cada rosto.
Embora quietos, os maltrapilhos passaram a demonstrar um pouco mais de audácia
e já não roubavam alimentos somente dos cães. Insinuavam-se por uma porta e
fixavam o olhar em quem quer que estivesse dentro da casa. E assim ficavam,
olhando e aguardando, olhando fixamente e aguardando interminávelmente, até que
lhes atirasse um pedaço de pão.
Algumas casas haviam sido abandonadas por seus
donos e permaneciam de portas fechadas, esverdeando-se a cada noite. Contudo
não eram muitas as casas fechadas, pois com o passar das manhãs sem chuva,
ficou muito mais difícil deixar o lugar. Julgavam que os portões estivessem
vigiados pelos pequenos e não tinham mais coragem para sair, exceto durante o
dia, para comprar mantimentos. Nessas incursões eram seguidos por inúmeros
olhos faiscantes que os acompanhavam até adentrarem o portão novamente. Assim
mesmo alguns fugiam quando a noite caía e supunham que os portões abertos não
estivessem sendo vigiados. Mas nos últimos tempos os portões passaram a ser
trancados, tão logo a noite caía.
Os que
não tinham reunido coragem para tentar fugir, também não ousavam fechar suas
portas durante o dia. Permaneciam dentro de suas casas, esperando que um rosto
pequeno e de olhos luminosos assomasse e ficasse à espera do pão. As crianças
do local eram os únicos a não sentir medo dos pequenos cinzentos e até se
atreviam a caminhar com eles pelas poças d’água que nunca secavam. Nos
primeiros dias foram repreendidos, mas depois tiveram muda aprovação para
circularem à vontade junto à horda crescente de cinzentos maltrapilhos. E já não era mais somente nas manhãs sem
chuva que eles apareciam. Bandos silenciosos, como espectros esquálidos,
chapinhavam o lamaçal das vielas mesmo quando a água da chuva insistia em
murmurejar nos telhados cada vez mais verdes, em intermináveis e monótonos
concertos.
Assim
definhavam os homens e mulheres daquele lugar, presos em suas próprias casas
com odor insuportável do mofo dos dias de chuva, visitados pelo cinzento
silêncio dos meninos de uma só cor, todos fundidos à lama, todos da mesma cor
que a chuva não conseguia alterar, todos com os mesmos olhos de pedir e
perscrutar suas almas. Assim começaram a sucumbir os mais fracos, que deixaram
de sair pelo portão das montanhas para buscar o pão vigiado, ou que por ele
deixaram de escapar. Assim foram morrendo afogados pela lama de suas vielas ou
pelo mar que abraçava a fuga impossível. Assim foram ficando mais verdes seus
telhados.
Até
que numa manhã, a segunda consecutiva em que o sol insistia inutilmente em
secar as poças daquele lugar, nenhum menino apareceu. O portão da praia
encontrava-se escancarado, talvez há muito tempo. O portão das montanhas
entreaberto. Por nenhum deles entrou sequer um menino maltrapilho e eternamente
calado naquela manhã. As poças, já menos numerosas, não foram pisoteadas pela
horda de pequenos pés magros e descalços. Nenhum rosto sujo assomou em qualquer
porta a olhar e esperar. Nenhum pequeno corpo cinzento e maltrapilho se
esgueirou pelos becos e pelas vielas.
Pouco a pouco, cada janela foi se abrindo e deixando à
mostra um rosto de olhar incrédulo. Logo os moradores foram deixando suas
casas, caminhando receosos e cambaleantes como zumbis. Ao se darem conta
daquele inesperado vazio de vultos cinzentos, incontinente, correram,
pisoteando a lama com passadas trôpegas. Ganharam o portão. Embrenharam-se rumo
à montanha, deixando para trás a vila vazia, com suas casas esverdeadas e seus
telhados cheios de limbo. Não ousaram olhar para os lados, pois sabiam que em
cada moita haveria um par de olhos faiscantes à espreita.
***
Publicado no livro "O Encantador de Passarinhos - e outras histórias"
Clube de Autores - São Paulo - 2011